O legado da dama do
teatro. Segunda edição do Festival Dulcina para fomentar o
retorno pós-pandêmico dos grupos de teatro brasileiros
O coração de Brasília volta a pulsar arte. O Teatro
Dulcina convida, por meio de edital a ser publicado hoje, atores, grupos e
espetáculos a dar vida ao palco da segunda edição do Festival Dulcina, previsto
para ocorrer em novembro deste ano. As inscrições ficarão abertas até o dia 25
de julho e podem ser realizadas on-line no site: ( https://festivaldulcina.com.br/ )
Em 4 de fevereiro de 1908, a cidade de Valença, no
interior do Rio de Janeiro, recebia um espetáculo. A estrela, Dulcina de
Moraes. Ainda no ventre da atriz Conchita de Moraes, a futura dama do teatro
decidiu que a subida da mãe ao palco seria a hora oportuna de vir ao mundo.
Impedida de atuar e com hospitalidade negada no hotel local, Conchita foi
acolhida pela então Condessa de Valença, que a concedeu um casarão abandonado
para ser o palco da peça armada pelo vindouro bebê. Em um colchão, rodeada por
prestativos moradores, a mãe entrega a criança à luz que, como reza a lenda,
chega ovacionada por uma salva de palmas. Nos 88 anos que se seguiriam, o
teatro nunca mais seria o mesmo. As palmas, incessantes, prosseguiriam junto.
Com início precoce na arte, Dulcina atuou por
grande parte da vida. A atriz, contudo, tinha uma visão holística do teatro que
não se prendia somente ao ofício no palco. Em 1955, a Fundação Brasileira de
Teatro (FBT) foi fundada no Rio de Janeiro pela artista. Em 1980, Dulcina
percebeu que o quadrado no meio do mapa Brasileiro se assemelhava, em seu
formato geométrico, a um gigante e inexplorado palco. Aqui, fincou bandeira no
centro da cidade com a fundação do Teatro Dulcina de Moraes e a transferência
da FBT, que posteriormente se tornaria a Faculdade de Artes Dulcina de Moraes.
As cortinas da dama do teatro se fecharam em 1996, quando a artista morreu por
complicações de uma diverticulite; o legado, contudo, com todas as glórias e
desalentos, segue vivo e se manifesta na segunda edição do Festival Dulcina,
marcado para novembro deste ano.
O festival: À frente do festival na posição de diretor geral,
Cleber Lopes começou a carreira como aluno na Faculdade Dulcina. Nos idos de
2011, como funcionário da instituição, Lopes começou a desenhar a ideia do que,
em 2018, se tornaria a primeira edição do Festival Dulcina: “Quando o
Ministério Público tomou a administração da faculdade, eu me tornei presidente
do conselho curador e fiquei no cargo de 2017 a 2019. Eu senti que era a hora
de fazer o festival e tentei emplacar um projeto de patrocínio privado, que foi
bem sucedido”. Com o peso da aura de Dulcina pairando sob o festival, a
primeira edição, que contou com nove espetáculos, foi exitosa: “Foi
surpreendente e emocionante. Todas as pessoas que participaram, ao final do
espetáculo, sempre agradeciam a participação e desejavam vida longa ao
festival”. O novato chegava com ares de veterano. “A gente percebeu que o
festival já nasceu com a energia de evento consolidado”, completa Cleber.
Inicialmente prevista para 2020, a segunda edição
do festival teve de ser cancelada devido à chegada da pandemia de covid. O
engavetamento do projeto, a qual Cleber se refere como o desmonte de um sonho,
felizmente, chegou ao fim. Previsto para acontecer entre os dias 3 e 13 de
novembro, o Festival Dulcina contará com 15 espetáculos, sendo 6 de Brasília e
9 de grupos nacionais. Para contemplar as vagas, um edital de chamamento será
publicado hoje. A curadoria, comandada pelo ator e diretor André Amaro e pela
atriz Eliana César, priorizará obras que tenham foco na poética corporal da
presença física dos atores no palco, que teve ausência tão sentida no
isolamento social. Das 15 vagas, uma é dedicada a espetáculos que contenham
pessoas com deficiência. Além da celebração do teatro, o festival servirá,
também, de vitrine para a Faculdade, que, entre problemas de gestão e desgastes
pandêmicos, acabou ferida.
A faculdade: Vítima de uma gestão anterior desastrada, a
Faculdade de Artes Dulcina de Moraes estava financeiramente fragilizada quando,
à porta da instituição, bateu a pandemia. O inevitável formato de aula remota,
que ajudou o mundo da educação a seguir de forma paliativa, encontra ainda mais
dificuldade em traduzir uma arte tão física quanto o teatro. Não havia outro
jeito. “O que não tem remédio está remediado”, desabafa Fernando Guimarães,
professor da instituição. Ainda assim, com a evasão de alunos, o educador resolveu
ter a visão otimista de ver o palco meio cheio: “Eu acho que conseguimos
realizar grandes projetos no formato on-line”. Fernando, bem como o corpo
docente que leciona na instituição, assume que doses de amor pelo ideal da
faculdade são necessárias para seguir em frente. ”Eu sinto que eu tenho uma
dívida com a faculdade”, declara Guimarães.
“Foi a primeira vez que se falou de um teatro
tipicamente brasiliense. Muitas pessoas incríveis passaram pela faculdade, que
fica em um lugar de fácil acesso para todos. Vários atores nossos estão na
televisão”, afirma Fernando, quando perguntado sobre a importância do espaço
para a capital. Aprendiz de Dulcina de Moraes, o professor recorre às memórias
com a dama do teatro para reafirmar a própria missão: “Eu convivi com ela, fiz
o curso com ela, foi minha professora. Ela é a maior influência na formação de
quem sou hoje como professor. Muito é do aprendizado com ela”. Em um exercício
de imaginação, o educador projeta o que ela pensaria sobre a atual conjuntura
da arte: “Ela [Dulcina] ficaria muito triste com o Brasil. Para ela, não
existia nada fora da arte”.
A cena teatral brasiliense, bem como a nova safra
de atores locais, dão respaldo para que Fernando mantenha o olhar positivo e
perseverante: “Temos inúmeros grupos com talentos muito diferentes. Nós temos
aqui em Brasília um micro-organismo do que é o Brasil em questão de cultura”.
Em tom esperançoso, mas que transparece confiança, o arte-educador finaliza:
“Se a gente não tiver uma visão otimista, quem vai ter? Eu estou lá há mais de
vinte anos. Já tivemos crises antes e sempre a superamos. Não será diferente
desta vez”.
Pedro Almeida - Fotos: Taís
Castro – Correio Braziliense