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Medo monstruoso e fascínio irresistível às vezes andam juntos

Medo monstruoso e fascínio irresistível às vezes andam juntos

Quando escurecia e todos dormiam, nas barracas do imenso areal do Rio Araguaia – de um lado o Pará, do outro, o Tocantins –, eu colocava a cabeça do lado de fora e não sem muito medo ficava sozinha diante do céu monstruoso. Tudo o que o olho humano pode ver do universo estava ali na abóbada negra. Uma nuvem comprida e leitosa demarcava o terreno cósmico onde existimos, a Via Láctea. De vez em quando, uma estrela cadente ou uma fileira de luzes que podia ser um disco voador mas era um satélite.

Dentro da barraca, eu pressentia o céu massacrante que me esperava. Tudo era solidão, o rio, a mata sombria nas duas margens, as barracas adormecidas e a entidade onipresente testemunhando tudo, um manto preto pontilhado de estrelas. Quanto mais estrelado o céu, maior a percepção do quanto ele é absoluto.  Anoitecia, o medo fascinante se aproximava e eu esperava por ele como quem espera pelo destino inevitável.

O céu inteiramente nu, descomunal, sem um pingo de nuvem, me deixava numa solidão desesperada, pois o que sou diante de dimensões inalcançáveis na escala humana e mesmo nas escalas astrofísicas?

Há umas 15 barracas ao meu redor. São amigos e colegas de acampamento, de 35 a 77 anos, solteiros, casados, sozinhos, acompanhados, brancos, pretos, pardos (como queiram), mais gordos, mais magros, mais ricos, mais pobres, héteros ou LGBTQIA+, todos dormindo sobre a mesma areia, tão estranhamente diferentes uns dos outros, todos compartilhando da mesma solidão do existir, solidão insulada no meio do rio.

Uma tribo momentânea e voluntariamente isolada – todos precisando uns dos outros pra cozinhar, limpar, lavar louça e banheiro de madeirite, arear panela e lavar roupa na beira do rio, uma renúncia aos confortos da civilização, um modo de lavar a alma, de recuperar o sentido de coletividade, e de ver com vagar uns aos outros, com tudo o que somos e o que não somos, o que temos e o que não temos.

Tudo diante de um rio cada vez mais triste, como constatam os ribeirinhos – o rio vem assoreando tragicamente nos últimos anos, na mesma proporção com o que o agronegócio avança nos arredores. Há estudos que preveem a morte do Araguaia para daqui a 40 anos. No período de seca, de julho a setembro, o leito do rio está cada vez mais raso, prenunciando um trágico deserto de 2 mil quilômetros de extensão.

Aqui na Terra os homens poderosos engolem os rios, alguns outros tentam descansar da desumanidade da vida urbana, e o céu, todas as noites, me chamava para o medo irresistível. Era a mínima parte do universo que nos cabe ver, mas era um Buraco Negro me chamando – os astrofísicos já descobriram que a força gravitacional dessas regiões de espaço-tempo engole tudo quanto está nas suas bordas, engole até a luz. E ainda não se sabe o que existe e o que acontece dentro dessa massa assombrosamente voraz.

O que diferenciava os Buracos Negros do universo e o da minha fantasia cósmica era o fino e esgarçado tecido sintético (azul!) da barraca de dois lugares. Se aqui na Terra, tudo está se degringolando, no infinito espaço-tempo que nos contém há algo de que tenho muito medo. Algo de que não deveria fugir e ainda não sei o que é.


Conceição Freitas – Foto: Cláudio Bento – Correio Braziliense


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