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O Enzo, a Lua, o Sol e o sonho

O Enzo, a Lua, o Sol e o sonho

Algumas manhãs parecem ter sido desenhadas por um deus de bem com a vida. Foi assim na quinta passada. Minha tarefa era voltar a uma das ruas mais antigas de todo o quadrado para fotografar a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos moradores do Vão do Buraco, hoje Rua do Mato, Fercal.  A igrejinha azul fica no fim da rua, atrás dela há um paredão de chapada. Era uma manhã traspassada pelo Sol de agosto, o céu todo estalava como ferro quente.

Um menino segurava uma meia laranja na mão esquerda e com a direita tentava proteger os olhos dos raios incandescentes do Sol. Perguntei o que ele procurava.

— A Lua.

Acompanhei a direção do olhar dele e fui atingida pela claridade ardida de um Sol sem bordas, todo ele esparramado pelo horizonte, como se estivesse descendo até nós. Imitei de novo o menino e tentei fazer uma sombra com as duas mãos e logo desisti. Era como procurar uma flor num chão em chamas.

— Como é seu nome?

— Enzo.

— Você tá vendo a Lua?

 Ali ó, e apontava o dedo da mão que segurava a laranja para o meio horizonte, a uns 30 graus do zênite.

Onde ele via o que procurava, eu só via desolação e decepção.

 — Tá vendo? Parece um graveto bem pequenininho. Também gosto de ver os planetas de noite, ele me disse, segurando a meia laranja e me olhando nos olhos. (Enzo tem olhos grandes como os de um telescópio). E voltou a mirar a Lua.

Perguntei se podia fazer uma foto dele, ele meneou a cabeça, me autorizando a guardar comigo aquela imagem telúrica de um menino de 6 anos que via a Lua no azul estalado de agosto sem nuvens antes do meio-dia.

Voltei no dia seguinte à Rua do Mato com um telescópio amador, bem amador, que estava guardado havia mais de 15 anos, sem nunca ter sido usado.

— Ô de casa.

Um homem apareceu na porta da casa que eu imaginava a ser a do Enzo.

— O Enzo mora aqui?

Um sorriso hospitaleiro e um chamado:

— Irene, tem uma senhora aqui perguntando pelo Enzo.

Mais sorriso acolhedor.

— Bom dia.

Expliquei o que tinha acontecido na manhã anterior e disse que tinha trazido um presente para o Enzo. Irene me convidou pra sentar à varanda, numa cadeira de fios de plástico muito usadas nos anos 1970. Chamou o Enzo e me contou que ele passa o dia procurando a Lua dia e de noite, procura os planetas.

— Meu celular tá cheio de fotos do céu. Eu nem vejo nada, mas ele vê a Lua. E faz foto de paisagens também.

Quando entreguei o telescópio ao menino-astrônomo, ele saltou do chão como quem queria alcançar a Lua. Pulou, abraçou o estojo azul, me abraçou, sentou no meu colo, esperou que a tia fizesse a foto e sumiu lá pra dentro, ele, o telescópio e toda a sua vontade de conhecer o que existe acima do chapadão, de onde vem a noite, o dia, as chuvas, os ventos, as estrelas e tudo o mais que ele ainda não sabe o nome (e nem nós sabemos).

Enzo nasceu na Rua do Mato, como a mãe, os avós e os bisavós.

Minha família está aqui há mais de 200 anos, conta Irene, 66 anos.

Ela conversava comigo com alguma inquietação. A panela do almoço estava no fogo, e os netos e o bisneto estudam à tarde.

Trocamos contatos, me despedi de todos. Olhei pela porta e vi Enzo sentado com as pernas esticadas no sofá, segurando o estojo com uma mão e olhando no celular com a outra. Nem me despedi. Ele já estava em outra cosmogonia.

As fotos da Lua e de paisagens da Rua do Mato que ilustram essa crônica são todas do Enzo. Ele vê a Lua onde eu só vejo a indiferença cortante do Sol.


Conceição Freitas – Fotos: As paisagens do Enzo Vinícius Rodrigues – Correio Braziliense


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