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Crônica para a menina que me disse que ler livro é o Ó

Crônica para a menina que me disse que ler livro é o Ó

— Tia, acho ler livro o Ó!

Os olhos atiçados da menina alta, de cabelos longos e lisos, negra talvez, já adolescente, não continham raiva nem ironia. Enquanto dizia que, para ela, ler era o Ó, ela levantava o livro acima da cintura, mas não como quem segura uma pedra, talvez como quem segurasse um passarinho.

A menina estava me dizendo que gostava de ler ou que não gostava de ler?

— Muito chato, ler, tia.

Fiquei meio confusa: o rosto estava tão aberto para a vida, havia um meio sorriso, um meio desabafo, algo que não consegui identificar, mas a frase e a expressão do corpo e do rosto da menina ficaram ressoando em mim:

— Tia, acho ler livro o Ó!

Tão largo e franco espírito não gostar de ler? Sim, e por que não?

A literatura é sim tudo o que os grandes escritores dizem dela.

“Escrevo para salvar a alma”, Fernando Pessoa.

Outro Fernando, o Sabino, disse que não saberia responder por que escrevia, e se soubesse talvez deixaria de ser escritor. É uma pergunta tão grave, ele disse, como se lhe perguntassem por que você vive? Por que ama? Por que morre?

Gabriel García Marquez foi freudiano: “Para que meus amigos me amem mais”.

Tudo o que se faz nesta bendita vida é pra ser amado ou mais amado ou minimamente amado. Mesmo o mais odiento dos seres está gritando de dentro suas trevas que quer ser amado nem que seja pelo ódio. Os inventores das redes sociais sacaram isso muito bem e nos fizeram escravos desse território das ilusões de que se é amado nem que seja por um like.

Quando surpreendeu o mundo literário avisando que nunca mais ia escrever, depois de ter embasbacado a todos com Lavoura Arcaica e Um copo de cólera, Raduan Nassar disse – numa das muitas entrevistas nas quais tentava explicar a razão de abandonar o sacrossanto altar da literatura – ele disse, com outras palavras, que o ser humano tem de ser sujeito do seu fazer, não importa se o que ele faz é escrever romances, plantar agrião ou fazer um bolo de trigo, ovos, leite e manteiga.

A menina para quem ler é o Ó estava ali sendo inteiramente dona de si mesma, estava sendo franca e clara para com alguém que vive de escrever. Tomara que continue assim, mesmo que nunca venha a gostar de ler livros. Durante mais de 200 mil anos os humanos existiram sobre a Terra sem ler um livro, e imagino que tenham sido muito mais felizes (ou menos infelizes) que os ditos civilizados que somos.

Liam sim, mas iguaizinhos à menina do Ó, dizendo simbolicamente as coisas importantes de serem ditas. E criavam mitos e deuses, e sabiam sobre o céu e a Terra mais do que a maioria de nós, letrados, sabemos.

Não basta gostar de ler, é preciso saber o que se está lendo e saber escolher o que se quer ler. Ou então ler de outra forma – ler o mundo fora da escrita.

Volto a Raduan Nassar. Perguntaram a ele, na época em que assombrou o Brasil com sua literatura forte como a terra, o que era preciso para ser escritor. E ele respondeu: ter um olho nos livros e outro no livrão da vida.

Se a Menina do Ó decidir que vai manter os dois olhos ligados no livrão da vida, seguirá verdadeira e suavemente imponente, alegre e afetiva, como naquele dia debaixo de uma árvore em frente à linda Biblioteca 108/308 Sul, Brasília, DF, Brasil.


Conceição Freitas – Correio Braziliense







 

 

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