O que ouvi, logo depois do
resultados do segundo turno, foi um estranho silêncio e quietude, nem um
cachorro latia, nenhuma mosca voava. O bar ao lado fechou bem antes da hora,
ninguém na rua, nem um carro chegando, nem uma moto roncando. Parecia aquele
instante de paralisia que se sucede a um fato extraordinário e inesperado.
Saí pra tentar saber o que de fato acontecia. Só a igreja evangélica estava quase cheia, mas não era de política que falavam, era de doenças em família. Quase ninguém na padaria. No bar fechado, quatro homens bebiam numa mesa que ficou do lado de fora. Passei por eles e ouvi: “Vou encher a cara até atropelar um petista”. Eu e meu vestido vermelho voltamos, numa reação instantânea, automática e meio irresponsável. “Tô aqui”. Os quatro homens jovens, não mais de 30 anos, magros, só um deles de camisa amarela, ficaram meio sem entender e não disseram nada. Segui meu caminho, eles murmuraram alguma coisa que não ouvi.
Foi a noite mais silenciosa dos últimos milênios na minha quadra bolsonarista. Já se sabe que esse é um movimento consolidado, eles surgiram das trevas (e da ignorância e da ingenuidade e do medo) e aprenderam a gostar do oxigênio que há no sentido de coletividade, pois não foi assim que o nazifascismo conquistou o povo alemão e o italiano?
Tem gente que precisa ter todas as respostas – o quê, quando, onde, como e por quê. E se aparece alguém ou uma rede de contínuas respostas (por mais absurdas que sejam), esse alguém atordoado encontra o abrigo de que precisava. E se sente respondido, apaziguado, protegido, parte de um poder acima de todos e acima de tudo.
É o que continuaremos a enfrentar todos os dias daqui pra frente. Esse pesadelo de quatro anos nos revelou um Brasil que não conhecíamos, o Brasil que se escondia em silêncios, dissimulações, maldizeres pelas costas, cordialidades fingidas. Mas eles, como nós, não são uma coisa só, há gradações e gradações de ódio, de atordoamento e de ingenuidade em cada um deles. Por certo, há um núcleo duro, violento, perigoso. Para esse, a lei.
Mas nessa multidão há gente que nunca antes havia discutido política, participado de política, feito campanha, se sentindo parte de alguma coisa grande. Ficar repetindo que eles são o “esgoto” do Brasil é não dar chance a esses pobres enlameados de aprenderem que há saídas que não sejam a do ódio. Ficar comparando Caetano Veloso ou Emicida ou Racionais MC com Chitãozinho e Xororó e outras bandas que se aliaram ao candidato derrotado, é abrir um vazio ainda maior entre nós, que nos achamos o Ó da humanidade e da cultura e aqueles outros, que carregam a pecha de incultos, sujos, fétidos.
A luta é no plano das ideias, dos horizontes, das utopias, das conciliações que terão de ser feitas. Como disse o presidente eleito, não há dois Brasis, é um só. Embora esse Brasil seja feito de muitos Brasis – o que nos diferencia são as singularidades culturais, sejam regionais, étnicas ou históricas. E o que nos distancia não é o esgoto como metáfora do bolsonarismo. O que nos distancia é o esgoto ou a falta dele no saneamento básico — na desigualdade social, das mais acentuadas do mundo.
Essa coisa de ficar tripudiando os derrotados é chutar cachorro morto. Há algo de covardia nisso, de desejo de vingança. É anti-político, no sentido de política como exercício de cidadania. É preciso trazer os derrotados para o lado dos vitoriosos, aqueles que ainda têm o espírito aberto (embora travado, manietado, enraivecido). Os memes tripudiando os eleitores derrotados são inteligentes, engraçados, bonitinhos, desrespeitosos e politicamente burros.





