O homem que morreu procurando a alma do Brasil
Darcy Ribeiro estava com um câncer terminal, na UTI quando fugiu do
hospital e foi para Maricá (RJ) viver a vida que lhe restava e concluir O
povo brasileiro – “escrever este livro foi o desafio maior que me
propus”. Homem de força vital extraordinária, Darcy já tinha vivido entre
índios, criado a UnB, criado escolas revolucionárias no Rio de Janeiro, sido
ministro da Educação, senador da República, escrito dezenas de livros, namorado
uma quantidade muito maior de mulheres. Estava com 75 anos, dos quais por mais
de 30 ele escrevia e reescrevia O povo brasileiro.
“Nunca pus tanto de mim, jamais me esforcei tanto como nesse empenho”,
ele conta na introdução do livro finalmente publicado em 1995, dois anos antes
de morrer. Um livro “que aspira ajudar o Brasil a encontrar-se a si mesmo”,
escreveu o antropólogo. Um Brasil dilacerado por “uma estratificação classista
de nítido colorido racial e do tipo mais cruamente desigualitário que se possa
conceber”.
O esforço do antropólogo de sorriso e olhos largos e de voz trêmula e
rápida, tamanha a energia vital, esse esforço vem sendo feito há bastante
tempo. Pensadores de variadas matizes vêm se dedicando a esboçar um retrato
minimamente veraz do que seja o povo brasileiro. A lista das obras clássicas
que tentam desenhar a nossa alma é conhecida por todo calouro de universidade
pública, entre as quais: Raízes do Brasil, Casa Grande
& Senzala, Os Sertões, A integração do negro
na sociedade de classes, Grande Sertão: Veredas. E mais
recentemente: Um defeito de cor, A queda do céu –
a busca de nossa alma nos negros, nos indígenas, em nós mesmos, que ainda não
somos. Estamos “em ser”, escreveu Darcy.
Embora visto com certo desdém por parte da academia, suponho que por
conta da vida bem vivida de Darcy – pensava, escrevia, militava, exercia cargos
de poder, dava aulas, amava, gargalhava, se exaltava, dedo em riste, coração
aberto. Amava apaixonadamente o Brasil, um amor tão grande, tão grande, que
pode mover até o mais desanimado dos brasileiros nessa hora tão grave que
vivemos.
Darcy Ribeiro, escreveu o professor Antonio Candido, do alto de sua
consagrada condição catedrática, “é um dos maiores intelectuais que o Brasil já
teve. Não apenas pela alta qualidade do seu trabalho e da sua produção de
antropólogo, de educador e de escritor, mas também pela incrível capacidade de
viver muitas vidas numa só, enquanto a maioria de nós mal consegue viver uma”.
Era uma escola de samba, o Darcy. Tanto que teve a ideia de fazer
escolas públicas em tempo integral nos vazios do Sambódromo, pré e pós
carnaval. Por trás do esplendor de sua pulsão de vida, existia um pensador
obsessivo. Do mesmo jeito que por trás dos desfiles esplendorosos das escolas
de samba (e não só no Rio e São Paulo, em Parintins/AM também), há pensamento e
gestão, alegria e organização, esforço e gozo.
E uma ferida que sangra desde Pedro Álvares Cabral. Desde que “os
navegantes, barbudos, hirsutos, fedentos, escalavrados de feridas de escorbuto,
olhavam o que parecia ser a inocência e a beleza encarnadas. Os índios,
esplêndidos de vigor e beleza, viam, ainda mais pasmos, aqueles seres que saíam
do mar”.
Era preciso fazer dinheiro nesse novo, rico e imenso território.
Tentaram escravizar os indígenas, não conseguiram salvo em raras e rápidas
investidas. Quatro milhões de homens, mulheres e crianças negras foram
arrancadas de suas terras e trazidas para o Brasil entre os séculos XVI e XIX.
Viveram se somar, do jeito mais impiedoso, aos indígenas sequestrados dentro de
suas próprias terras.
Desde que passou a existir como colônia de Portugal, o Brasil foi um quintal
do Império, dos impérios. “Se os índios sobreviventes do Brasil resistiram a
toda a brutalidade durante quinhentos anos e continuam a ser eles mesmos (não
existe não índio), seus equivalentes da África resistirão também para rir na
cara de seus líderes neoeuropeizadores”.
Essa dilapidação bárbara e contínua, interrompida em raros e felizes
momentos, essa ocupação do território indígena e sequestro de povos negros,
essa desigualdade social indecente, fizeram de nós, brasileiros, um povo
sem consciência de si mesmo. Fugimos de nossa ferida e seguimos fugidios,
atordoados, prontos para sermos fanatizados.
Mas Darcy acreditava que essa mistura de Brasis tão diversos —
ilhas-Brasil, ele dizia — podia florescer como “uma nova civilização, mestiça e
tropical, orgulhosa de si mesma. Mais alegre, porque mais sofrida. Melhor,
porque incorpora em si mais humanidades. Mais generosa, porque aberta à
convivência com todas as raças e todas as culturas e porque assentada na mais
bela e luminosa província da Terra”. Era amor demais pelo Brasil.
Esse povo impedido de ser, na dura busca de seu destino, como escreveu Darcy Ribeiro, está a duas semanas de decidir se seguirá tentando encontrar a própria alma, no que há de melhor em nós, ou vai escolher o caminho trágico de ser o pior que há em nós.