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A verdade em fantasia

A verdade em fantasia

O problema das efemérides é que, no frigir dos ovos, elas não têm serventia. É assim agora: faz 10 anos que o Correio Braziliense começou a publicar este caderno e, com ele, essas crônicas. Ou mais ou menos isso, só o Chiquinho do arquivo é capaz de saber a data certa.

Além de não dar muita pelota para datas e efemérides, embora seja interessado leitor de almanaques, sou um desorganizado em tempo integral. Mas foi em junho de 2013 que comecei a escrever neste espaço; sobre tudo. Ou principalmente sobre nada.

Já são mais de mil textos (outras crônicas são publicadas aos domingos). Cerca de 500 mil palavras!

Forjado na objetividade retilínea da reportagem, já tinha me arriscado na seara dos artigos e até em editoriais. Mas crônica é uma mistura bem brasileira, com um pouquinho de cada coisa, que permite até que o assunto até seja… o cronista, como este caso.

Um repórter não pode ser comparado a um literato. Mas uma ou duas coisas sobre crônicas aprendi nesse tempo de labuta. A principal talvez seja que a reportagem é correr atrás da notícia; na crônica acontece o inverso: é a notícia que encontra o autor do texto.

Crônica vem do grego khronos, tempo. É narrativa linear, cronológica e verídica, sem muito aprofundamento ou interpretação, que nem sempre respeita essas regras. Cabe um pouco da fantasia do romance, que dá cores mais nítidas a determinadas passagens, da mesma forma que poetas fazem em alguns versos.

Machado de Assis – ele próprio autor de crônicas – comparou cronistas a fofoqueiros. Disse que o gênero surgiu coetâneo com as duas primeiras vizinhas, que debicavam sucessos do dia. E pode se acrescentar: enquanto falavam de uma terceira vizinha. O que diria o chamado bruxo do Cosme Velho se conhecesse esses influenciadores da internet…

A crônica mudou. Não está mais presa aos fatos do dia a dia, como nos primórdios; virou quase um vale tudo: é real, mas permite licenças, mistura jornalismo com literatura e raramente ultrapassa a fronteira delimitada pela data do jornal. É um retratinho 3×4 do momento, morre cedo e embrulha peixe. O cronista é também um fingidor.

Ao contrário da reportagem, a crônica – assim como o artigo – permite o uso da primeira pessoa – e traz, portanto, uma visão intransferível de um fato. O cronista tem direito de enxergar uma girafa onde outras pessoas só veem um cachorro.

É enganosamente simples. A boa crônica parece ter sido escrita num único fôlego, narrada como um ‘causo’; raramente é assim. Há um jogo de raciocínio, uma criteriosa escolha de temas, ainda que sejam ambientados num único lugar. E é preciso alguma sofisticação de linguagem, para que ela seja a mais simples possível.

A crônica deve ser um oásis na aridez do noticiário; uma pausa – um gracejo ou um momento de reflexão. Um cronista pode chegar ao cúmulo de usar os quase extintos pontos de exclamação!

Não se sabe quanto tempo as crônicas vão sobreviver num mundo que se comunica de pio em pio, como se fosse um galinheiro. Mas até que um cometa volte a atropelar o planeta, vai ter coisa para contar.


Paulo Pestana – Correio Braziliense




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