Imagens apaixonantes
O nome dela é Milla Sofia. É linda, desinibida; jovem, loura, distribui
fotos com pouca roupa nas redes sociais e tem posições inteligentes e claras. É
uma influencer, essa profissão que ninguém sabe como definir, se é que é uma
ocupação, cheia de seguidores. Mas a moça não existe.
Mostrei as fotos para o Valdeci que, este sim, está vivo e tem
profissão; aliás, várias. É um faz-tudo – bombeiro hidráulico, pedreiro,
marceneiro, o chamado pau para toda obra. Depois de algum tempo de contemplação
e de um suspiro, disse: “É um espetáculo”.
Não se abalou quando eu disse que a Milla não existia, tinha sido criada
por inteligência artificial, era só uma imagem, embora conversasse com as
pessoas pelas redes sociais. É mesmo um prático: “É igual aquelas fotos que a
gente via nas revistas de mulher pelada”, me disse. “Podiam até existir, mas
quem é chegava nelas?”.
Precisava do Valdeci para
mostrar que essa história de adorar ou admirar uma imagem não tem nada de novo.
É mais comum a adoração a pessoas que já pisaram no planeta como nós, caso dos
santos católicos, de alguns grandes vultos. Todos igualmente distantes.
Mas há também a devoção a
animais – os antigos egípcios adoravam os gatos, povos aborígenes prestavam
culto a ursos e alces, vários deuses eram representados com cabeças de animais
– e ainda existem os fitolatras, que se dobram a plantas, especialmente
árvores.
O ser humano, no princípio dos
tempos, fez da pedra seu primeiro objeto de adoração, o que acontece ainda hoje
no norte da Índia; a Bíblia conta a história de Jacó, que dormia sobre uma
pedra, tal a veneração.
Os quatro elementos fundamentais
– terra, ar, fogo e água – também são objeto de culto do início (o sopro da
vida, a água do batismo) ao fim da vida (a pira purificadora ou a terra que
agasalha o corpo).
Aqui mesmo em Brasília havia uma
turma que se reunia para adorar – ou reverenciar, vá lá – seres extraterrestres,
com incursões ao antigo platô onde hoje está a Torre Digital e a áreas rurais
próximas. Não consta que algum disco voador tenha descido, mas muito alegavam
terem sido abduzidos.
Portanto, ninguém tem o direito
de se surpreender quando vê outro babando por uma imagem feita num computador,
inclusive mandando mensagens para a moça inexistente – talvez quebre barreira
dos tímidos, vai saber – que responde.
Ingres provocou o mesmo no
século XIV, usando pinceis e tinta para retratar beldades que não existiam;
dois séculos antes dele, Rubens pintou mulheres de sonho – para os padrões da
época – que deviam provocar o mesmo frisson que Milla Sofia vem causando.
Segundo Vasari, que além de
pintor devia ser um grande fofoqueiro, Michelângelo ficou tão impressionado com
o próprio trabalho que, depois de terminar a estátua de Apolo, teria exclamado:
“Parla! (fala). Há adoração maior que essa?
A diferença é que até agora eram
apenas mulheres e homens de sonho, inalcançáveis. Hoje há uma brincadeira de
realidade que não pode fazer bem a ninguém. Mas não há mais espaço para a
surpresa: certamente tem gente levando uma foto da Milla Sofia na certeira e a
apresentando como namorada.