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Crônica: Aula de malandragem

Aula de malandragem

O ser humano não se cansa de surpreender. Na fila do supermercado, bem no caixa rápido para quem leva até 10 itens, a senhora posicionou o carrinho cheio. Muito cheio. Ao lado, a garotinha alertou: “– Mãe, aqui é só para quem tem 10 compras. Está escrito ali”.

A jovem senhora fez cara de paisagem e pôs o dedo indicador em frente a boca – gesto universal de pedido de silêncio.

A menina, que deve ter 9, 10 anos, insistiu: “– Mas mãe, olha o que está escrito ali”. A mulher, mais ríspida, soltou um psiu, acompanhado de uma cara bem feia. A próxima ameaça provavelmente seria tirar todos os pacotes de biscoito do carrinho. Mas a menina não se intimidou e voltou a dizer que a mãe estava no caixa errado.

O rapaz que vinha atrás e não usava nem a cestinha, abraçando suas poucas compras, tinha a impassividade dos humildes, a mocinha do caixa fingia se concentrar nas compras do cliente que digitava a senha do cartão na maquininha. O único olhar reprovador foi o do homem que pagava.  Não disse nada; não precisava.

A mulher deu ré no carrinho e foi procurar outro caixa, mas fez cara de quem comeu e não gostou e pisou alto com a altivez de um ministro pego em flagrante delito. Evidentemente contrariada, esperou a passagem de um carrinho tão cheio quanto o dela sem dizer nada; e sem responder as perguntas que a menininha fazia sem parar e sobre tudo – menos sobre a fila do caixa; aquilo estava resolvido.

Falta de educação faz parte da vida adulta. Não devia mas faz. Nos acostumamos com as pequenas malandragens do dia a dia, como carros estacionados em fila dupla, troco de balinha, o médico que pergunta se a gente vai querer nota fiscal, porque aí é mais caro ou o fiscal que dá toda a pinta de querer uma bola, mas a gente nunca sabe se é para se livrar do problema ou para ser flagrado em mais um delito.

As crianças deviam estar protegidas desse mundo. A formação do caráter precisa de exemplos retos, incorruptíveis, pretos ou brancos; depois a vida vai tratar de torcer a personalidade de cada um da maneira que se apresentar e surgirão os tons de cinza.

Adultos são capazes de entender a responsabilidade que cada ação traz consigo; conhecem as consequências, mesmo que finjam surpresa quando pegos com a mão na botija.

Há um enorme desânimo no país, que aumenta a cada ex-culpado declarado inocente, a cada malandragem judicial descoberta, a cada poderoso resgatado. Há uma breve comemoração quando alguém de alto coturno é levado aos costumes, mas a ressaca vem em seguida. “Onde vamos parar?” virou uma pergunta retórica há tempos, infelizmente sem data para deixar de ecoar. E vamos levando.

A pequena esperteza da mulher do caixa foi barrada por uma criança que ainda não entende o mundo dos adultos. Pena que logo, logo ela será uma de nós.


Paulo Pestana – Correio Braziliense




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