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Crônica: "Pela derrota do tempo"

Pela derrota do tempo

A única maneira segura de mexer com o passado é o álbum de fotos. Descobri alguns dias atrás que, ao contrário do que acreditava, o passado muda, sim, e que o tempo não é tão poderoso quanto se pensa. Por acaso encontrei um amigo de infância; os dois, a pelo menos 1.500 quilômetros da cidade em que nos conhecemos.


Foi um encontro à moda antiga, fortuito, sem intervenção de nenhuma rede social, na calçada em frente a um shopping, entre as asas do Plano Piloto. Destino ou serendipidade, vínhamos em direção contrária – eu distraído como sempre –, quando ouvi meu nome.

De início não o reconheci, mas ele começou a puxar a rede de neurônios cheia de furos do meu cérebro e reconstruiu lembranças que estavam em algum canto cheio de teias de aranha. O comichão provocado pelas memórias, no entanto, revelou que o meu passado – embora fosse o mesmo – não era igual ao dele.

Não precisamos de um DeLorian, o carro do filme De Volta ao Futuro, para dar uma espiada nos dias idos, mas é também uma viagem estranha, cheia de cenas distorcidas.

Não tenho a menor ideia de como funciona o hipocampo, mas no meu caso a seleção do que está guardado no córtex e subcórtex do cérebro não obedece a uma lógica que eu compreenda, porque lembro muito bem de coisas absolutamente irrelevantes enquanto outras – talvez mais importantes – ficam perdidas.

Memória e tempo são antagônicos. As lembranças são selecionadas, claro; mais do que isso, distorcidas. Mas é assim que sentimos as emoções, formamos o caráter e temperamos a vida.

Um encontro casual – separado por tantos anos – provoca sensações que pareciam esquecidas; quase deu vontade de chamar meu amigo para bater um bafo de figurinha.

É estranho vê-lo com rugas e cabelos brancos enquanto eu parecia estar ali de calção e com uma atiradeira de galho de goiabeira nas mãos – o espelho nos trai diariamente mostrando uma imagem que não corresponde ao nosso espírito; é reconfortador descobrir que isso não faz a menor diferença.

Não crescemos juntos; antes mesmo da adolescência eu e meu amigo já vivíamos em cidades distantes. Não trocamos cartas, telegramas, telefonemas – nenhuma dessas coisas que nem existem mais, mas a memória não deixou que o tempo nos vencesse.

E tudo o que a gente lembrava eram as brincadeiras, a escola, os bolos que a gente comia na casa de um ou do outro, todas as tardes. E dos outros amigos.

De repente, a vida assume um novo significado, como se as décadas de intervalo não existissem, numa empírica mas eficiente comprovação de que o conceito espaço-tempo de Einstein é incontestável, mesmo sem fórmula.

Amigos desafiam o tempo, esse deus invencível. Um por todos, todos por um, gritavam os mosqueteiros de Dumas. Não importam os anos transcorridos, não importa o lapso que nos separa e que até se esforça para que a memória os apague, a força da amizade é maior.

Já marcamos um novo encontro. Acho que vou levar umas bolinhas de gude, umas carambolas. O nosso objetivo é derrotar o tempo.


Paulo Pestana – Correio Braziliense




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