Belém — Nove de dezembro de
2022. Sala de conferências do Estádio da Educação, no Catar. Abalado pela
eliminação nos pênaltis contra a Croácia, Tite se recusa a avaliar o legado de
seis anos e meio de trabalho: “O tempo pode responder melhor. Não tenho condição
de avaliar todo o trabalho. Com o passar do tempo, as pessoas vão fazer uma
avaliação devida”, afirmou o ex-técnico da Seleção sem saber que o Brasil
passaria por uma transição inusitada neste ciclo tendo como início o “titês”,
meio o “dinizismo” e fim o aguardado “ancelotismo” na Copa do Mundo de 2026 no
Canadá, Estados Unidos e México.
Oito de setembro de 2023. Estádio Mangueirão, em Belém. O sucessor interino de Tite inicia a campanha nas Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2026 com nove jogadores presentes na lista do Adenor no Catar: Ederson, Danilo, Marquinhos, Casemiro, Bruno Guimarães, Raphinha, Neymar, Rodrygo e Richarlison. Seis deles encerraram a gestão passada como titulares.
Um dos trunfos de Fernando Diniz na goleada por 5 x 1 contra a Bolívia nesta sexta-feira, aqui em Belém, foi a humildade. Entender o trabalho anterior como ponto de partida para a aplicação dos conceitos dele. Ao não fazer terra arrasada, adubou o caminho para um bom trabalho de reciclagem até a provável entrega do bastão, ou melhor, da prancheta, a Carlo Ancelotti.
O Brasil foi meio “Frankenstein” no Mangueirão. Metade Tite, metade Diniz. Compreensível levando-se em conta a carência de tempo para implementar conceitos próprios e romper em definitivo com o passado. “Peguei um trabalho bem fundamentado do Tite, que criou um ambiente muito bom, tinha uma maneira clara de jogar. Cheguei para contribuir nesse cenário. Jogadores souberam absorver muito do que tenho de ideia de jogo, ser agressivo, ter posse e ser eficiente. Embora só três dias de trabalho, parece que não é tanto, mas é coisa”, afirmou.
Apesar da fragilidade da Bolívia, pior seleção sul-americana no ranking da Fifa e ausente na Copa do Mundo desde 1994, foi possível notar vestígios da Era Tite e conceitos do dinizismo. Os pontas se comportaram como na gestão anterior. Raphinha fixo na direita e Rodrygo na esquerda. A diferença é o apoio. Danilo e Renan Lodi subiram para fazer aquelas ultrapassagens de ponta e lateral muito comuns nos anos 1980 e início dos 1990.
Perguntei ao Tite especificamente sobre isso na entrevista coletiva. Rodrygo e Renan Lodi fizeram uma dobradinha pela esquerda como se conhecessem há tempos. Quando um vinha para o meio, o outro aproveitava o corredor e vice-versa com muita sincronia. Diniz respondeu ao blog:
“Era uma alternativa para o jogo de hoje, o jogo estava congestionado, então podíamos explorar as laterais. O Renan tem essa característica de ser mais ofensivo. Teve muita jogada com o Danilo também, entrando mais de meia, e Raphinha usando mais as jogadas individuais. Fizemos muitas jogadas e gols dos dois lados. Tivemos muito leque de opções. Movimentação de ataque, transições longas, foi um jogo bem interessante da parte ofensiva”, comentou.
As ideias de Diniz estavam em campo. Casemiro emulou André do Fluminense. Volta e meia aparecia entre os zagueiros Marquinhos e Gabriel Magalhães construindo a saída de jogo. Aqui entra outra característica do novo treinador: movimentação. O capitão também foi visto pisando na área no ataque. O novo conceito cobra menos função fixa e mais movimentação.
Neymar circulou pelo campo. Era meia, mas o lance do quase golaço passando por cinco marcadores começa no cantinho predileto dele, a ponta esquerda. Por falar no camisa 10, vimos dinizismo em uma cobrança de córner — o tal do escanteio curto do Fluminense agora faz parte do repertório da Seleção. Tite usava o 2-3-5 para agredir o adversário. Diniz também em um modo mais ousado. Encurralou a Bolívia com Neymar, Raphinha, Rodrygo, Richarlison e Lodi.
Diniz também gosta daquelas jogadas iniciadas em um lado do campo e concluídas do outro. O lance do primeiro gol ilustra bem isso. Raphinha bagunça no lado direito, finaliza, e o atento Rodrygo acompanha o lance com atenção do outro lado para aproveitar a sobra e marcar. Ainda é cedo, mas Fernando Diniz conseguiu muito em tão pouco tempo.
O comportamento contra o Peru na próxima terça-feira, em Lima, pode ser mais um passo importante na consolidação até a chegada de Carlo Ancelotti. “Quero entregar o melhor para a Seleção para quando houver uma troca de comando, tenha um time bem treinado e quem chegar consiga levar e pensar que ficou em boas mãos e tem chance de seguir um caminho vitorioso”.