Concretizou-se nesta terça-feira (26/9) a alteração
de critérios para promoção nas carreiras dos magistrados previstas na Resolução
CNJ nº 106/2010, que tão somente explicitava os critérios expressamente
contidos na Constituição e na Loman (Lei Orgânica da Magistratura). Tal modificação é flagrantemente inconstitucional.
Afronta os parâmetros objetivos previstos na Carta
Magna e extrapola os limites regulatórios do CNJ. Recorde-se a redação
atualmente em vigor da dita resolução, seguia fielmente o estabelecido nas
normas de regência. A antiguidade fixada pelo tempo de exercício na classe e o
merecimento observados critérios objetivos de apuração, nela fixados. Tão
objetivos que nunca contestados. Destaque-se que a norma fixava, como
elementos:
I - desempenho (aspecto
qualitativo da prestação jurisdicional);
II - produtividade (aspecto
quantitativo da prestação jurisdicional);
III - presteza no exercício das
funções;
IV - aperfeiçoamento técnico;
[e] Artigo 5º Na avaliação da
qualidade das decisões proferidas serão levados
em consideração: a) a redação;
b)clareza; c) objetividade; d) pertinência de doutrina e jurisprudência quando
citadas;
e) o respeito às súmulas do
Supremo Tribunal Federal e dos Tribunais
Superiores.
A referida resolução (nº 106), se houve de modo
preciso e técnico. Bem exerceu a atividade reguladora setorial, técnica,
visando dar concretude ao estabelecido na Constituição, não
"inovou" "não alterou o texto constitucional", nem a
Loman, pois tal ao CNJ não caberia. Deu-se concretude aos critérios
constitucionalmente fixados. Observe-se que a dualidade e alternatividade de
critérios antiguidade e merecimento é bem
consolidada na história republicana.
Destaque-se que tal é historicamente observada nos
sucessivos estatutos de servidores públicos federais (v.g. a atual Lei 8.112 e
na anterior Lei 1.711/520) e em todos os estatutos de servidores estaduais; na
normatização das carreiras de agentes especiais como dos membros do Ministério
Público) e não apenas em relação à magistratura. Relembre-se, por exemplo, o
comentário de Pontes de Miranda ao artigo 144, da CF de 1967, c/a EC
nº 01/69 [1].
Segue-se o texto do notável jurista: A
Constituição de 1967, como a de 1946, diante das críticas que fizéramos
resolveu melhor o problema de técnica legislativa constitucional: uma
vaga preenchida é por antiguidade, outra por merecimento, só entre
juízes; para acesso ao tribunal de Justiça, uma vaga é preenchida por
antiguidade, outra por merecimento [2].
Na vigência da Constituição anterior [1967 com a EC
nº01/69], foi editada a Lei Orgânica da Magistratura [LC nº 35, de
14.03.1979], que estabelece, acerca dos critérios para promoção e remoção, ao
estabelecer: Artigo 80 - A lei regulará o processo de promoção,
prescrevendo a observância dos critérios ele antigüidade e de merecimento,
alternadamente, e o da indicação dos candidatos à promoção por merecimento, em
lista tríplice, sempre que possível.
Parágrafo 1º:
II - para efeito da composição
da lista tríplice, o merecimento será apurado na entrância e aferido com
prevalência de critérios de ordem objetiva, na forma do Regulamento baixado
pelo Tribunal de Justiça, tendo-se em conta a conduta do Juiz, sua operosidade
no exercício do cargo, número de vezes que tenha figurado na lista, tanto para
entrância a prover, como para as anteriores, bem como o aproveitamento em
cursos de aperfeiçoamento;
§2º - Aplica-se, no que couber,
aos Juízes togados da Justiça do Trabalho, o disposto no parágrafo anterior.
Artigo 81 - Na Magistratura
de carreira dos Estados, ao provimento inicial e à promoção por merecimento
precederá a remoção".
A Constituição de 1988 recepcionou o dispositivo [3] que fixa os critérios de promoção, mantendo-os incólumes, conforme bem exposto por Alexandre Moraes [4] dentre inúmeros outros, como Walber Agra, Gilmar Ferreira Mendes, José Afonso da Silva [5], podendo-se afirmar tratar-se de matéria pacífica tanto no campo doutrinário como jurisprudencial [6].
Pretendeu-se, entretanto, no âmbito do CNJ,
fixar critérios outros para remoções e promoções de magistrados, embora
sem qualquer alteração ocorrida no texto constitucional balizador, visando
introduzir o elemento gênero para mixa-lo com esses critérios
existentes, como se tal fosse mera questão interpretativa o que evidentemente
não o é.
Ao introduzir um terceiro elemento de ponderação o
CNJ alterou, sem ter competência para tal, expressa previsão constitucional.
Não se trata de supressão de lacuna, como indevidamente se afirmou. O "texto
inovador" — Ato Normativo 0005605-48.2023.2.00.0000 representa
um exemplo típico de usurpação de competência constitucional.
Da análise da proposta
"inovadora"
O texto proposto, sem dúvida, é
flagrantemente inconstitucional, é um típico exemplo de algo que vem se
expandindo no direito brasileiro, que é a profusão de normas reguladoras
violadoras do princípio da legalidade, quer sob o aspecto hierárquico, quer da
reserva de lei e, no caso, mais grave ainda, com lesão direta ao próprio texto
constitucional.
Um órgão regulador, mesmo que relevante, estaria a
adotar uma postura que vem sendo repelida, corretamente, pelo colendo STF em
inúmeros outros casos, que é a de arvorar-se ao patamar de órgão legislativo
primário, o que por si só já violaria diretamente o princípio constitucional da
legalidade.
Ao entender que uma norma constitucional deve ser
alterada, parte-se simploriamente para uma interpretação construtiva agregando
elementos outros não extraíveis do texto constitucional. Observe-se que aqui
não se trata de evolução do texto, mas de alteração.
Sobre a necessidade de preservação do princípio da
densidade mínima para não violação do princípio da legalidade já tive
oportunidade de me manifestar defendendo [7], enfaticamente o risco da usurpação de
competência por normatizadores secundários e terciários. Exige-se, como
bem lembra Andréas Krell, "standards suficientemente guiadoras
da ação executiva".
Mister se faz, destarte, que, mesmo em se
adotando o modelo de quadro, medida, standard, tal tenha densidade suficiente
para não se transformar o princípio da legalidade em mero instrumento de
fixação de competências. Bem ressalta Artur Cavalcanti [8], invocando ensinamentos de Oswaldo
Aranha Bandeira de Mello: "Afirma o citado mestre que as leis de
delegação ou leis de habilitação, chamadas pelos franceses de lois-cadres
(leis-quadro), devem traçar contornos limitativos à ação do Executivo. Tais
leis justamente delimitam o objeto sob o qual o Executivo poderá exercer
posteriormente a edição de atos normativos. 'A lei de habilitação fixa os
princípios gerais de ingerência governamental e entrega ao Executivo o encargo
de determinar e verificar os fatos e as condições em que os princípios gerais
devem ter aplicação'. Há, portanto, a necessidade de que as leis de habilitação
tracem os limites que devem ser obedecidos pelas agências reguladoras".
Casos como este aqui examinado, de violação do
princípio da legalidade têm sido objeto de controle judicial, inclusive pelo
STF. Citem-se, dentre outras, a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº
1.668 (DJU de 16/4/2004), na qual o Supremo Tribunal Federal, em relação
ao citado artigo 19, incisos IV e Direito, da Lei 9.472/97, fixou interpretação
de conformidade com a Constituição para estabelecer que a competência da
Anatel para fixar normas subordinar-se-ia aos preceitos legais e
regulamentares que regem a outorga, prestação e fruição dos serviços de
telecomunicações no regime público e privado.
A inconstitucionalidade aqui se repete: o CNJ,
por mais relevante que seja, por mais meritórias que possa ser entendida a
pretensão, deve respeitar as molduras e balizas constitucionais. O
presente caso é típico de pretensão de aceleração de defendida igualdade
de gêneros, com um ativismo violador do princípio da legalidade.
Não é dado ao CNJ, mesmo com o brilho intelectual
que tenham seus integrantes, inclusive a relatora do processo, conhecida
defensora da tese, atropelar regramento constitucional expresso. Patente é a
afronta ao principio constitucional da legalidade [9] e [10]. No caso, entretanto, há uma afronta mais
grave, ainda, diretamente a regra contida no texto constitucional.
Embora gênero seja um aspecto relevante da
humanidade, a Constituição não considerou tal como elemento definidor do
direito dos magistrados a ascender aos degraus superiores das carreiras
judiciárias, como tal não o são em relação às carreiras do Ministério Público,
nem mesmo dos servidores públicos [vide p, e., a lei nº 8.112/90].
A louvável pretensão esboçada no posicionamento da
relatora representaria uma verdadeira alteração material nos critérios e
elementos a serem observados para definir as modificações verticais nos postos
ocupados por magistrados nas carreiras judiciais. Não se alegue que aqui se
trata de mera interpretação, pois disso não se trata, mas em verdade, de
mudança materiais de critérios afrontando expressamente o disposto na
Constituição — artigo 93.
Lei complementar, de iniciativa do STF, disporá
sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios: I - II -
promoção de entrância para entrância, alternadamente, por antiguidade e
merecimento,... ...; III o acesso aos tribunais de segundo grau far-se-á por
antiguidade e merecimento, alternadamente, apurados na última ou única
entrância.
Tudo isso desmorona com a aprovação da proposta no
Conselho Nacional de Justiça, sem função de substituto do constituinte
derivado, nem do legislativo. A pretensão esboçada na proposta e aprovada,
pretende transformar o CNJ, com todo o respeito em "déspota
esclarecido", na expressão de Wilhelm Roscher, em que um ente de Estado, à
época o soberano, sem respeitar limites legais e constitucionais, imbuído até
de "boas ideias", ao menos no entender do soberano, poderia, a partir
dessa avaliação, agir livremente, o que é incompatível com o Estado democrático
de direito.
O colendo STF já necessitou lembrar desses
limites a vários entes reguladores setoriais, como a ANP, a Aneel, dentre
outros, rechaçando inconstitucionalidades como a que aqui se avizinha. Essa
matéria é de grande relevo. Embora o princípio da legalidade esteja inserido
como direito fundamental, como clausula pétrea no artigo 5º da
Constituição, replicado no artigo 37, ao tratar dos princípios da
Administração Pública, é comum a tentativa de burlá-lo, inclusive por vias
oblíquas, como de se pretender fazê-lo sob o argumento de se tratar de
"mera interpretação construtiva".
O argumento é falacioso, pois, quando se tem a inserção de novos pressupostos e requisitos não previstos na Constituição e aditados por normatizadores secundários não se pode falar em interpretação, mas em alteração de conteúdo material.