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Crônica: Quem precisa de tutor?

Quem precisa de tutor?

O pior tipo de ignorante é aquele que tenta se passar por culto. Dias desse um amigo me chamou a atenção quando falávamos de um terceiro – “é preciso ter muito cuidado com o fulano, porque ele é perfeito quando se finge de inteligente”. Mas o pior tipo de ignorância é aquela epidêmica, que vai se imiscuindo até virar verdade absoluta e inapelável.

Por exemplo: chamar quem tem um animal de estimação, que em português foi traduzido para pet, de tutor.

Há uns três anos apareceu uma gatinha lá em casa. Era bem novinha. Foi ficando, ainda que confinada à área externa, aninhou-se, ganhou uma caixinha para dormir, uma tigelinha de água e outra de ração. De vez em quando ganha uma boa escovada para não ter que engolir tanto pelo e não precisa regurgitar aquelas bolas peludas.

Ela não tem a menor ideia que tem um tutor. Mia – sim, ganhou um nome também – se achega, esfrega o corpo na perna e solta um miado manso. Mas não obedece; ressabiada, rebelde. Gato não sabe o que é obedecer, não reconhece o próprio nome, só faz o que quer, quando quer. Mais: gato se comporta como se o dono fosse ele, mais ninguém.

Tutor de cachorro não tem a vida mais fácil depois que foi renomeado. O animal continua o mesmo puxa-saco subserviente de sempre, com os problemas habituais – cava buracos, faz xixi para marcar território, late fora de hora, tem até gravidez psicológica. Mas atende pelo nome, embora – pelo menos no caso da Baguncinha, que mora lá em casa –, não tenha percebido diferença no tratamento depois da mudança do nome do dono, ops, tutor.

É a mesma ignorância demonstrada pelo Tribunal Superior Eleitoral que, possivelmente por falta do que fazer entre um pleito e outro, recomenda que não se use determinadas palavras e expressões por, supostamente, ofenderem determinados grupos de pessoas. É o caso de “a coisa tá preta”, quando queremos dizer que o negócio ficou feio.

É típica apropriação do termo errado, como se preto – ao invés de significar um apagão de consciência, muitas vezes por uma queda de pressão arterial – fosse um adjetivo para se referir à cor da pele.

Semelhante é o caso de “feito nas coxas” para se referir a algo improvisado e mal realizado, porque supostamente está se falando de trabalho escravo, quando as telhas das casas eram moldadas nas coxas, como se todo caboclo não fizesse o mesmo até inventarem o molde.

Uma coisa é banir expressões ofensivas, como “serviço de preto”, “coisa de índio” ou “burro como polaco de colônia”. Bem diferente é criar novas acepções para justificar um veto. A língua portuguesa é rica e não precisa de tutores.

A nova edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, da Academia Brasileira de Letras, registra 330 mil palavras; o dicionário Houaiss conta mais de 442 mil verbetes. Mas há linguistas que acreditam que há pelo menos o dobro.

Sempre é melhor ensinar do que vetar; a falta de educação vai bem além do idioma. Até para quem tem cachorro e gato em casa.


Paulo Pestana – Correio Braziliense



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