Se alguém pegar um violão,
começar a tocar e cantar sob uma janela hoje em dia – por mais afinado e
talentoso que seja – corre o risco de levar tiro. Não apenas pela violência que
grassa, mas principalmente pelo mau gosto musical que o Brasil cultivou do
sertão aos morros urbanos. Mas nem sempre foi assim; houve tempo em que
seresteiros eram cultuados.
E Brasília foi criada sob o
ritmo da seresta. Nos primeiros anos, o presidente Juscelino Kubistchek trouxe
vários músicos para animar as noites frias e cheias de estrela do Catetinho, um
antidoto contra a calmaria que antecedia os frenéticos dias de obras.
Havia a bossa nova de Tom Jobim
e Vinicius de Moraes, convidados a criar a Sinfonia da Alvorada e
que se inspiraram no regato do palácio de tábuas para compor Água de
Beber. Mas era a seresta que dava o tom.
Estrelas do rádio como Silvio
Caldas e Dilermando Reis – este também professor de violão de JK e quem
apelidou a construção de Catetinho, alusão do Palácio do Catete, sede do
governo no Rio de Janeiro – embalaram muitas serestas e a tradição se seguiu por
anos na capital, com artistas se apresentando nas casas noturnas, aliviando as
dores de amor ou embalando amores clandestinos.
O tempo passou, a música mudou,
artistas se transformaram em servidores públicos, mas sempre houve quem
mantivesse viva a chama dos primeiros dias. Josemir Barbosa foi talvez o último
desses artistas de voz poderosa e interpretação emocionada de canções inesquecíveis.
Ele morreu no último dia 6.
Josemir cantou para JK quando
atuava no Rio, mas fez um imenso séquito de admiradores em Brasília,
especialmente no Glauco’s, bar da 208 sul, espécie de bunker dos antigos
cantores do rádio. Veio a convite de Waleska, que ganhou de Vinicius de Moraes
o título de Rainha da Fossa, para cantar por duas noites. Se encantou pela
cidade e nunca mais saiu.
Fez temporadas nos restaurantes
Mouraria, Antigamente e o do Bristol Hotel, onde cantava em “dias de
frequentador profissional”, às terças e quartas. O repertório era vasto,
recolhendo canções registradas por Dick Farney, Nelson Gonçalves e Tito Madi,
entre outros, como se fosse uma missão para manter vivos os standards da
seresta. Chão de Estrelas, Pensando em Ti, Negue, Meus Tempos de
Criança eram canções obrigatórias em suas apresentações.
Pernambucano de Garanhuns,
Josemir gravou vários discos, hoje raros, por exigência dos fãs, que esgotavam
as tiragens – apenas um deles, Uma Noite na Fossa (1968), parceria
com Waleska, pode ser ouvido nas plataformas de streaming. Segundo a insuspeita
opinião de Silvio Caldas e Sérgio Bittencourt (autor de Modinha e Naquela Mesa),
Josemir Barbosa era “o último seresteiro do Brasil”.
Estavam certos. Não se ouve mais
vozes como essas, canções com letras sensíveis e melodias que privilegiam a
beleza que deu origem à arte. São tempos de ruptura. Com a decência, com o
belo, palavra, atitude. Para ouvir alguém cantando Boêmio, de Ataulfo Alves (“a
boemia resume, no vinho, o amor e o ciúme, perfume, desilusão”), só achando uma
máquina do tempo.