A
origem cristã do carnaval são os excessos nos dias de despedida da abundância
na mesa, antes de começar o jejum e a abstinência de carne na Quaresma. Dias de
libertinagens, para ironizar, debochar, criticar – como faziam as marchinhas de
carnaval de minha mocidade. Em dias de hoje, a gente fica desejando que a
permissividade do Carnaval dure o ano todo. Porque, depois do “Cala a boca já
morreu”, da então presidente do Supremo, ministra Carmen Lúcia, em 2016, e da
fala libertária do ministro Alexandre de Moraes, em 2018 (“Quem não quiser ser
criticado, ser satirizado, fique em casa; não seja candidato, não se ofereça ao
público para exercer cargos políticos”), muita coisa mudou.
A
principal arma da democracia não é o fuzil nem o canhão; é a palavra, a
argumentação, a opinião; a liberdade de expressão e de manifestação. Por essas
armas o povo, origem do poder, expressa sua vontade todas as horas de todos os
dias do ano, inclusive no carnaval e na quaresma. E, de tempos em tempos,
nomeia pelo voto os seus representantes, transferindo-lhes poder para fazer
leis e governar municípios, estados e união. A escolha é feita por voto secreto
e com contagem pública e transparente, como determina o artigo 37 da
Constituição. Aos eleitos como representantes do povo nos parlamentos, é
garantida a inviolabilidade penal e civil por quaisquer palavras, opiniões e
votos. Juízes são nomeados por seus méritos para julgar com isenção, sem
interesses pessoais e sem ter o menor envolvimento com o caso.
Os excessos de expressão estão previstos em lei. Injúria, calúnia e difamação são crimes previstos no Código Penal. A Constituição garante indenização para violações da privacidade, da intimidade, da honra e da imagem. O artigo 5º, pétreo, imutável, proíbe tribunal de exceção, garante amplo direito de defesa e estabelece que só o juiz competente pode processar e condenar alguém. Os direitos e liberdades fundamentais são tão essenciais à democracia, que a Constituição manda punir quem atentar contra eles.
Em
tempos de carnaval a realidade brasileira desfila desnuda pela avenida e o
público percebe que a Constituição é marca de fantasia para avanço de
autoritarismo, enfraquecimento da representação popular, desequilíbrio de
poderes e, principalmente, controle do sagrado direito de expressão e de
manifestação. Cala a boca ressuscitou e autoridades públicas não aceitam ser
criticadas. A alegação paradoxal é que as ações autoritárias e
anticonstitucionais são para defender a democracia em perigo. O perigo é justamente
calar. Quando se calam os contrários, mata-se a democracia. Com jejum e
abstinência de liberdades, todos os dias se tornam quarta-feira de cinzas.