Não
sei em que bloco você desfila, que fantasia veste, qual batuque lhe anima, se é
do samba, do axé ou do frevo. Que ritmo bate aí no seu peito, orquestrado,
cadenciado ou descompassado mesmo? Pode ser que você seja só do silêncio, do
descanso, das séries, dos filmes, do edredom. Mas a verdade é que todos nós,
brasileiros, temos nosso carnaval — seja particular, seja coletivo. Somos
feitos de festa por aqui.
Enquanto
me preparo, aqui em Salvador (e olhe que sou filha do frevo, pernambucana!),
para ver de perto Gil, Ivete e outros que vão desfilar em seus trios, ainda me
sinto em outro camarote, assistindo à vida de Raimundinha passar brilhante,
cheia de confete e serpentina. Fui à despedida de uma grande mulher, dona Maria
Raimunda, a tia-mãe de Ana Paula, a tia-mãe-amiga de tantos outros, que ela
adotou em seu coração, como o Marcelo Abreu, Ana Sá e tantos outros, e nutriu
com carinho e oração.
A
mais religiosa das criaturas fez da vida um maravilhoso baile de carnaval. E
não há, aí, exagero e nem contradição. Todos os depoimentos e testemunhos sobre
sua jornada por aqui confirmam o que eu sabia. Raimundinha era feita de
alegria. Irreverente, já no hospital, antes da derradeira cirurgia, fez piada
com o anestesista que perguntou sua idade. "Tu não tens o prontuário não?
Olha lá!".
A
primeira a chegar à missa para colocar o nome de tantos na fila de intenções
também era a primeira a tirar o passaporte da gaveta para contemplar e ouvir o
que o mundo e a vida tinham a lhe mostrar e a dizer. Era da taça de vinho, da
boa comida, do lado bom da vida. Sou mesmo do bloco de Raimundinha.
Vou
ao Expresso 2222, porque recebi esse maravilhoso convite e não seria besta de
perder essa experiência. Mas vou por você também, Rai. Aquela que ensinou que a
alegria de estar no mundo tem muito a ver com a fé em Deus, com o milagre da
vida e com o reconhecimento desse milagre. Aos 91 anos, ela foi fazer uma festa
com os anjos, mas deixou esse legado maravilhoso, um recado. Houve aplauso,
reverência, músicas lindas em seu cortejo final. É ou não um lindo carnaval?
Se
quisermos e nos esforçamos para entender o que faz a vida valer a pena, seremos
também carnaval por toda a nossa existência. Eu sou devota da alegria, do
humor, da gargalhada. Isso não significa que não tenhamos nossos momentos de
dor, tristeza, angústia, dúvida, ansiedade, medo. Significa apenas que esse
combo não precisa nos definir.
Despeço-me
com as sábias palavras de dom Helder Câmara, nos idos de 1975, em sua crônica
radiofônica na Rádio Olinda AM: "Peca-se muito no carnaval? Não sei o que
pesa mais diante de Deus: se excessos, aqui e ali, cometidos por foliões, ou a
falta de caridade por quem se julga melhor e mais santo por não brincar o
carnaval. Brinque, meu povo querido! É verdade que na quarta-feira a luta
recomeça, mas ao menos se pôs um pouco de sonho na realidade mais dura da
vida". Brinquemos, pois. Ainda que debaixo dos lençóis. Desde que seja com
alegria.