Nas
sexta-feira (15), assim que tive acesso à chamada “Minuta do Golpe”, me pus a
conversar com pessoas que entendem muito mais de política e direito do que eu.
Uns se limitaram a respostas não-verbais, como emojis que expressam raivinha ou
tristeza – ou ainda o abjeto, repugnante e execrável sinal de positivo: o
“curti” que leio sempre como um sinal de desdém, como se o interlocutor desse
de ombros para a opinião alheia. Outros... Deixa eu abrir um novo parágrafo.
Outros
me deram visões bastante interessantes. Alguém, ao ler a minuta, apontou nela a
obsessão de Bolsonaro por agir “dentro das quatro linhas” – isso num país onde
o Judiciário há muito abandonou qualquer apego às regras do jogo. Outro
perguntou por que o Estado de Defesa está na Constituição se não é possível
decretá-lo nem cogitá-lo. Houve quem apontasse a cegueira política de Bolsonaro
e quem citasse as ilegalidades contidas na infame minuta, como a prisão sumária
dos ministros do TSE. Imagina!
A
tudo eu ouvia e lia com atenção, despreocupado de concordar ou refutar. Só
estava observando impressões alheias, baseadas em informações e paixões
diversas das minhas. Até que, no meio da conversa, me dei conta:
perdemos. Mais do que isso, naquele instante percebi quão acachapante é a nossa
derrota. Perdemos todos os que ainda acreditamos, nem que seja marginalmente,
em democracia e Estado de Direito e outras palavras e expressões cada vez mais
esvaziadas de sentido.
Um
sacerdote secular que, para proteger a honra virginal da democracia, a
transformou numa meretriz.
Perdemos.
Só pelo fato de estarmos dispostos a discutir as intenções golpistas ou não de
Bolsonaro, se o ex-presidente cometeu ou não crime, se vai ou se vai ser preso
por causa da tal minuta – discussão que tem como base uma prova obtida durante
uma operação de pescaria, num inquérito ilegal, conduzido por um déspota que se
considera um cruzado na batalha contra o Mal Absoluto. Um sacerdote secular
que, para proteger a honra virginal da democracia, a transformou numa meretriz.
E
eu queria poder vir aqui hoje e dizer que a nossa derrota para por aí. Mas não.
Porque ao nos submetermos à “atmosfera de culpabilidade” imposta por um STF
totalmente bêbado de poder, e que já não tem mais a menor ideia do seu papel
nesse teatro todo, nos reduzimos a marionetes nisso que vou chamar de ditadura
da vingança. Afinal quem hoje em dia ainda tem a ambição de ser justo, e não de
ver prevalecer sua vontade?
Essa,
por sinal, foi a pergunta que me fiz ao longo de todo o fim de semana: também
eu perdi a ambição de ser justo? Provavelmente. Porque sou humano e barroco,
mas não só. Também porque hoje me confundo todo com essa tal de justiça de que
me falam os jornais e os políticos e os ministros do STF. Uma justiça cuja
noção foi totalmente pervertida e que hoje se resume à satisfação de um desejo
animalesco de vingança.
Atiramos
a primeira e a segunda e a terceira e todas as pedras que temos à disposição no
nosso arsenal de soberba.
É
assim que, em meio ao café da tarde com meus pais, reflito sobre uma justiça
mais racional e, ouso dizer, próxima do que almejavam lá atrás os juristas e
constituintes que jamais poderia imaginar que um dia o Judiciário seria tomado
por aspirantes a divindades. Uma justiça distante do ideal, mas possível, e que
pressupõe não só punição e reparação – ou seja, vingança. Longe disso! Uma
justiça que pressupõe inocência e, quando há culpa, pressupõe a possibilidade
(ainda que improvável) de arrependimento e (mais improvável ainda ) perdão. Ah,
quão distante estamos disso!
Por
fim, mas não menos importante, outra coisa que perdemos nesse imbróglio todo
foi a capacidade de reconhecermos nossa pequenez e impotência diante dos
grandes atores históricos nesse espetáculo maldito e danado que é governar os
homens. Por isso consumimos notícias como se, de repente, todos tivéssemos nos
transformado em juízes do mundo. Conjecturamos como agiríamos no lugar de
Bolsonaro – e sempre estufamos o peito para dizer que tomaríamos decisões
melhores, mais acertadas e inequivocamente democráticas. Sei.
Desavergonhados
e talvez distraidamente, levados pela necessidade de sermos aceitos por uma
multidão anônima e raivosa que, atiçada por uma noção pervertida (insisto:
pervertida) de justiça, assiste ao ritual cruel do apedrejamento público,
atiramos a primeira e a segunda e a terceira e todas as pedras que temos à
disposição no nosso arsenal de soberba. Ou seja, perdemos.