A porta dos barracos, dos
antigos acampamentos que abrigavam os operários que construíram Brasília, era
sem trinco. Talvez escoradas apenas pelas conhecidas tramelas de madeira. Não
era preciso trinco, reinava paz e harmonia naquele ambiente de pura humildade,
esperança de dias melhores e sonhos de que um dia a vida seria melhor.
Afinal, estavam ali construindo
uma cidade, erguendo prédios para o poder e moradias para abrigar famílias que
chegavam de outros campos, de todo lugar. Não era preciso se trancar, todos
dormiam a noite, o dia seguinte era de poeira e suor.
Ao contrário da poesia cantada
de Orestes Barbosa, a vida não era um palco iluminado, ninguém se vestia de
dourado, e não haviam palhaços em perdidas ilusões, tampouco guizos falsos de
alegria. Havia sim uma efusiva salva de palmas febris, uma esperança em imensos
corações, de que um dia, quem sabe, tudo aquilo se tornaria um novo lugar para
se viver, quem sabe como o cantar alegre de um viveiro.
Roupas comuns penduradas em
varais, trapos coloridos agitavam bandeiras e a vida tinha que ser vivida, como
se fosse um eterno festival. Muitos viviam fantasias, entre palmas de ricas
emoções. Baianos, goianos, gente do Sul e do Norte, muitos de todo lugar, era
uma caravana de eterno chegar, para uma cidade edificar. O chão de poeira,
cimento e ferro se dilatava no planalto central. Era um esboço, um projeto,
onde muitos sopraram ventos e fizeram uma Nova Capital. Por aqui, sessenta e
quatro anos atrás, os astros não eram distraídos e aqueles quase sempre mal
vestidos sequer se davam ao luxo de comemorar um feriado nacional.
Não há como não se emocionar, e
não sentir o coração, ao relembrar essa epopéia que passou. Uma aventura
vivida, dose alta de emoção. A obra se fez cidade, cresceu a população, e hoje
quando clara a realidade muitos ainda buscam no passado algum abrigo que
acalenta o coração. Hoje nossa cidade, adulta, madura, pronta com outro chão,
transpira o ar do progresso. Se apresenta ao mundo com imponência e garbo,
muito mais para ser vista como grande Metrópole do que um palco saudosista de
um luar do sertão.
A luta que se trava hoje é para
que haja menos tetos de zinco, que a lua ilumine barracos com mais estruturas,
e mantenha o mesmo amor no coração. E tudo seria bom, e tudo seria melhor, se
meia dúzia de poderosos olhassem com ar de ternura e com vontade de fartura
para centenas de moradores de ruas, que perambulam pela cidade, sem onde dormir
e comer.
Sem onde viver. E tudo seria bom, e muito mais saudável e sadio, se meia dúzia de governantes olhassem com mais cuidado e carinho as filas intermináveis da população que dorme nas filas dos postos de saúde, onde a saúde é capenga. Aos 64 anos, nossa cidade tão bela, amada e curtida nos quatro cantos do mundo, não pode ser manchete de jornal estampando foto de criança visitando cestas de lixo na periferia.
Há que se ter um basta nessa
parafernália gerada por um trânsito desgovernado e mal sinalizado, que
aplica um castigo sem piedade, sem a menor consideração. Nossa cidade é uma
catedral da natureza, onde o verde prevalece, o ambiente favorece a vida e o
cidadão busca o que precisa, e merece.
Em memória daqueles que aqui
plantaram, e fizeram gerar esse monumento da humanidade, o mínimo que se pode
pedir é que cuidem melhor do nosso chão, e que se espalhe por aqui com a mesma
intensidade – o sentido da preservação, do bem viver e da boa gestão.
Há quem diga, que depois dos
sessenta, aos erros cometidos dificulta-se o perdão. Nossa boa estampa figura
mundo afora, somos até citados como exemplo de modernismo e de melhor viver.
Nada mais justo e correto, mas para que isso se perpetue, população e governo
devem atuar juntos. A população, da forma possível e com empenho e prazer, tem
se dedicado, na teoria e na prática. Como estrela do nosso chão Brasília. Que
assim seja.