Na
teoria republicana clássica, a soberania de um sistema de governo reside no
povo e é exercida por meio de representantes eleitos. Os representantes,
incluindo o presidente e todos os funcionários de Estado, são mandatários do
povo, jamais o próprio povo. Esta distinção entre povo e seus representantes é
fundamental para manter a legitimidade e a funcionalidade do governo
republicano.
Lula,
que vive eternamente de palanque, recentemente afirmou o seguinte a respeito de
si mesmo e, consequentemente, de sua concepção de Estado: “Eu não sou só um
presidente da República que está junto do povo. Eu sou o povo na presidência da
República”. Há tantas camadas absurdas aqui, e eu gostaria de analisar algumas.
Ao
afirmar que “é o povo na presidência da República”, Lula confunde os papéis de
representante e representado e distorce o princípio representativo, alicerce de
uma república. A propósito, o sistema republicano só faz sentido quando
estabelece limites morais e institucionais para frear déspotas e populistas.
Ao
se posicionar como a encarnação do povo, Lula fomenta o personalismo
centralizador do poder que desrespeita o pluralismo e a diversidade de opiniões
Em
sua forma essencial, a república é caracterizada por uma estrutura de governo
em que há uma clara separação e balanço entre os poderes. Trata-se de um
problema que atravessou a história do pensamento político. Para ser preciso, a
essência de toda república é justamente limitar a tentação despótica e frear a
dominação arbitrária. Portanto, dar ao povo uma forma de se proteger de quem
fala demais em nome do povo.
A
sintomática declaração de Lula indica o enfraquecimento dessa estrutura, ao
fazer de si mesmo a identificação pessoal e direta entre o chefe do Executivo e
o povo. Lula, no auge de sua arrogância messiânica, não só marginaliza o papel
dos outros poderes e instituições, que são essenciais para um governo
equilibrado e justo; mais do que isso, ele corrompe o vínculo entre o povo e
seus mandatários.
Na
república – e obviamente me expresso aqui em nível ideal –, o presidente é um
servidor público com poderes e responsabilidades definidos pela Constituição. E
quem sustenta o espírito da Constituição é o povo. Sendo Lula o povo, logo ele
se autocompreende como a própria Constituição. A afirmação que Lula expõe é
delirante. Ele busca a fusão entre a sua pessoa e a totalidade do povo.
No
nível moral da relação com o poder, um presidente deve promover a unidade, a
coesão social e o respeito pelas instituições democráticas. Ao se posicionar
como a encarnação do povo, Lula fomenta o personalismo centralizador do poder
que desrespeita o pluralismo e a diversidade de opiniões. Ele quer ser cultuado
como um novo messias. Esse mecanismo retórico funciona assim: ao criticar Lula
e suas decisões políticas, o crítico é visto como um inimigo do povo. Bem
conveniente a um populista messiânico.
Aproveitando
o momento, eu gostaria de retomar meus comentários a respeito da Doutrina
Social da Igreja. Um dos aspectos mais interessantes da concepção de comunidade
política no cristianismo é justamente o de colocar limites a demagogos
populistas que se identificam com o povo. Por hoje, analisarei apenas um trecho
do documento: No parágrafo 379 do Compêndio de Doutrina Social da Igreja, o
texto é explícito:
“Jesus
rejeita o poder opressivo e despótico dos grandes sobre as nações e suas
pretensões de fazerem-se chamar benfeitores, mas nunca contesta diretamente as
autoridades de seu tempo. Na diatribe sobre o tributo a ser pago a César, Ele
afirma que se deve dar a Deus o que é de Deus, condenando implicitamente toda
tentativa de divinizar e absolutizar o poder temporal: somente Deus pode exigir
tudo do homem. Ao mesmo tempo, o poder temporal tem o direito àquilo que lhe é
devido: Jesus não considera injusto o tributo a César. Jesus, o Messias
prometido, combateu e desbaratou a tentação de um messianismo político,
caracterizado pelo domínio sobre as nações.”
No
contraste entre Lula e Cristo, não resta dizer que o atual presidente da nossa
república não seria outra coisa a não ser um “anticristo político”
Aqui,
Jesus exemplifica a liderança servil e o respeito às autoridades estabelecidas
sem a tentação de messianismo político. Nossa autoridade estabelecida,
diferente da época de Jesus, é a república, cujo presidente é só um
representante eleito – diga-se de passagem, provisoriamente. Jesus nos ensina
que o verdadeiro poder reside no serviço e na humildade, não na manipulação
populista ou na autoproclamação como salvador do povo.
Nesse
contraste entre Lula e Cristo, não resta dizer que o atual presidente da nossa
república não seria outra coisa a não ser um “anticristo político”. Jesus
Cristo “veio para servir e entregar a própria vida”, portanto, tem propósito
messiânico genuíno; Lula, autoproclamado messias, que explicitamente busca
divinizar e absolutizar o poder temporal, ao contrário, acha que deve ser
servido e extrair o máximo de benefício para a própria vida.