É raro passar muitos dias seguidos, hoje em dia, sem
que o noticiário registre mais uma agressão do sistema judicial contra a lei, a
lógica e a própria ideia de justiça. É um B.O. permanente, aberto cinco anos
atrás com a substituição do ordenamento legal do Brasil pela vontade, a fé e os
interesses de indivíduos que ocupam, por nomeação, os galhos mais altos do
Poder Judiciário. Nunca mais fechou, e nem dá sinais de que venha a fechar um
dia – ao contrário, como ocorre com as doenças degenerativas, vai destruindo
cada vez mais o organismo atingido por elas.
Um dos agentes mais agressivos da presente escalada
contra a ordem jurídica é o Conselho Nacional de Justiça, órgão que é pago pelo
cidadão brasileiro para fiscalizar a conduta dos membros do aparelho judicial.
Não fiscaliza nada do que deveria fiscalizar – ou pior, fiscaliza e sempre, sem
falhar nunca, premia o infrator. Deu, agora, para perseguir os magistrados que
não submetem suas sentenças aos desejos da facção política comandada pelo STF,
em geral, e pelo ministro Alexandre de Moraes, em particular. Ou seja: é ruim
de um lado e pior do outro.
O CNJ do Brasil de hoje, para se fazer um resumo da
sua transformação em sanatório geral, tem juízes amigos e inimigos. Em seu
surto mais recente de hiperatividade, envolvendo as duas categorias de
magistrados, serviu como escritório de advocacia para o juiz instrutor Airton
Vieira e o juiz auxiliar Marco Antônio Vargas, que servem nos gabinetes de
Moraes, no STF, e na presidência do TSE - quando ele estava lá. Vieira,
conforme se viu nas gravações de suas conversas sobre assuntos de trabalho,
obtidas pelos jornalistas Glenn Greenwald e Fábio Serapião e publicadas pela
Folha de S. Paulo, recomendou que um servidor da polícia eleitoral comandada
pelo ministro usasse a sua “criatividade” para fabricar provas. Vargas, por sua
vez, disse o seguinte: “Dá vontade de mandar uns jagunços pegar esse cara na
marra e botar num avião brasileiro”. Esse “cara” é o jornalista Alan dos
Santos, exilado nos Estados Unidos para não ser preso pelo STF. Moraes insiste
em dar ordens de extradição contra ele - apenas para se ver ignorado tanto pela
Interpol, como pelo governo americano. Nenhum dos dois faz prisões políticas.
A decisão irritou o ministro Moraes e isso, no manual
do CNJ, é crime de lesa-pátria: São comportamentos aberrantes para um juiz de
Direito, e o Partido Novo pediu que o CNJ, que está aí para coibir justamente
essas aberrações, abrisse uma investigação sobre a ocorrência. Em cinco
minutos, sem verificar nada, o corregedor nacional Luís Felipe Salomão mandou
arquivar o pedido; segundo ele, não houve “má fé” em nada do que está descrito
aí acima. Em compensação, o mesmo CNJ e o mesmo Salomão montaram um pelotão de
fuzilamento contra os juízes José Gimenes, do Paraná, e Ana Cristina Vignola,
de São Paulo. Gimenes, juiz em Maringá, está sendo processado no CNJ por ter
decidido favoravelmente o pedido de indenização de um censurado do ministro
Moraes nas redes sociais. Ana Cristina está sendo processada por falar mal de
Lula na campanha eleitoral de 2022 e por acusações de “preconceito, homofobia e
racismo”. Já tinham, antes, excluído da magistratura a juíza Ludmila Grilo, de
Minas Gerais, por declarações contra o governo e o STF.
No seu manifesto em defesa dos juízes do STF e do TSE,
o corregedor Salomão diz que é preciso respeitar a “independência” dos
magistrados – a história da criatividade e dos jagunços, segundo ele, está
protegida por este princípio. Já no caso do juiz de Maringá, que apenas deu uma
sentença legítima, plenamente dentro de suas atribuições, a independência não
se aplica.
A sentença, como qualquer outra, pode estar equivocada
– e, nesse caso, está sujeita à reforma em instância superior. Mas o problema
não é esse. A decisão irritou o ministro Moraes e isso, no manual do CNJ, é
crime de lesa-pátria. O Rei Salomão da Bíblia, apontado há 3.000 anos como o
juiz mais justo da história humana, decidiu dividir o bebê em dois, como é bem
sabido, para separar a mãe falsa da mãe verdadeira. O Salomão que temos hoje na
justiça brasileira não quer saber desses detalhes. Sempre entrega o bebê,
direto, para o STF.