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“Ainda Estou Aqui” e Bolsonaro motivam STF a rever Lei da Anistia

“Ainda Estou Aqui” e Bolsonaro motivam STF a rever Lei da Anistia

Num momento em que cresce no Congresso a campanha da direita em favor da anistia aos condenados pelo 8 de janeiro de 2023, o Supremo Tribunal Federal (STF) se move numa direção oposta, de revisitar um tema que parecia superado: a revisão da Lei da Anistia, de 1979, que concedeu um duplo perdão: de um lado, a militantes da esquerda armada que combatiam o regime militar com assaltos, sequestros e assassinatos; e de outro, a militares e policiais que reprimiram os primeiros com prisões ilegais, tortura e execução.

Desde o fim do ano passado, no embalo do sucesso do filme “Ainda Estou Aqui”, vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro – que narra o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva, em 1971, e o drama de sua família –, alguns ministros têm mobilizado o STF para rever a Lei da Anistia, mas apenas para um lado: manter o perdão para os integrantes da luta armada, mas permitir punição para os agentes da repressão.

Ainda não há previsão de julgamento sobre a revisão da Lei da Anistia, mas já existe ampla maioria no tribunal para revisitar o tema.

Além do frisson midiático em torno do filme, o interesse na causa e o ambiente político propício, na visão de alguns ministros, contribuíram para requentar o tema. De um lado, um governo do PT, historicamente favorável à revanche contra seus opositores. Do outro, há a intenção de enviar um recado de que para certos crimes não há perdão possível – o que casa com a contrariedade, já externada por vários ministros, de anistiar os condenados pelo 8 de janeiro.

Soma-se a isso uma composição renovada do STF, diferentemente daquela de 2010, quando a Corte confirmou a validade da Lei da Anistia. Naquele ano, por 7 votos a 2, a maioria dos ministros julgou improcedente uma ação da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que pretendia punir os agentes do Estado e manter o perdão aos militantes da luta armada.

O argumento era de que a anistia deveria abranger apenas “crimes políticos”, que, na visão da OAB, seriam apenas aqueles cometidos por militantes que combatiam a ditadura. Para a entidade de classe, os policiais e militares, por sua vez, teriam cometido “crimes comuns”, que não deveriam ser perdoados.

O STF, na época, rejeitou essa tese por entender que a anistia foi concebida para ser “ampla, geral e irrestrita”, com a intenção de perdoar os crimes dos dois lados, como passo fundamental para a redemocratização do país na década seguinte.

“A chamada Lei da Anistia veicula uma decisão política naquele momento”, disse o ministro Eros Grau, relator do processo, na época. Ele mesmo foi vítima de tortura. No voto, ele rememorou que a lei, proposta pelo governo militar, foi aprovada no Congresso com apoio de amplos setores da sociedade civil – sobretudo, pela própria OAB.

“Foram todos absolvidos, uns absolvendo-se a si mesmos. Ocorre que os subversivos a obtiveram, a anistia, à custa dessa amplitude. Era ceder e sobreviver ou não ceder e continuar a viver em angústia (em alguns casos, nem mesmo viver). Quando se deseja negar o acordo político que efetivamente existiu, resultam fustigados os que se manifestaram politicamente em nome dos subversivos”, disse ainda no voto. Eros Grau aposentou-se do STF em 2010.

Na época, seguiram Eros Grau os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Ellen Gracie, Cezar Peluso, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia – hoje, somente os dois últimos permanecem no STF. Votaram contra Carlos Ayres Britto e Ricardo Lewandowski, também já aposentados.

Como o STF pode agora rever a Lei da Anistia: Passados 15 anos dessa decisão, três ministros escolhidos depois para a Corte iniciaram o movimento pela revisão da Lei da Anistia: Flávio Dino, Edson Fachin e Alexandre de Moraes. Todos relatam recursos do Ministério Público Federal (MPF) que chegaram ao STF nos últimos anos contra decisões de instâncias inferiores que, com base no julgamento de 2010, rejeitaram a abertura da ações penais contra militares, policiais e civis envolvidos na repressão.

Um dos argumentos do MPF é que, no caso de vítimas da ditadura que desapareceram – como o próprio Rubens Paiva, levado um dia de sua casa e nunca mais encontrado – configura-se o crime de ocultação de cadáver. Como o corpo nunca mais foi achado, haveria um crime permanente, que se estende no tempo até os dias atuais e que, por isso, não estaria coberto pela Lei da Anistia, que perdoou “crimes políticos ou conexos” cometidos entre 1961 e 1979.

Trata-se de uma tese já aceita por Flávio Dino, que iniciou a atual onda de revisão da Lei da Anistia no STF. Em dezembro, ele votou por conferir repercussão geral a um recurso extraordinário do MPF contra decisão do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1) que rejeitou uma denúncia contra os tenentes-coronéis do Exército Lício Maciel e Sebastião Curió. Eles são acusados de matar, em 1973, André Grabois, João Gualberto Calatroni, Antônio Alfredo de Lima e Divino Ferreira de Sousa, militantes do PcdoB que integravam a Guerrilha do Araguaia.

Dino proferiu o voto no dia seguinte à prisão do general Walter Braga Netto, ex-ministro da Defesa e da Casa Civil de Bolsonaro, e o primeiro com essa patente a ser preso após a Constituição de 1988 – ele foi denunciado por suposta tentativa de golpe em 2022. Na mesma semana, por unanimidade, os outros 10 ministros aceitaram a repercussão geral do tema. Com isso, a decisão que for tomada no caso deverá ser replicada para todos os casos semelhantes no país.

Dino mencionou o caso de Rubens Paiva e do estudante Stuart Angel. “A história do desaparecimento de Rubens Paiva, cujo corpo jamais foi encontrado e sepultado, sublinha a dor imprescritível de milhares de pais, mães, irmãos, filhos, sobrinhos, netos, que nunca tiveram atendidos os seus direitos quanto aos familiares desaparecidos. Nunca puderam velá-los e sepultá-los, apesar de buscas obstinadas como a de Zuzu Angel à procura do seu filho.”

Em fevereiro, Alexandre de Moraes seguiu Dino e votou pela repercussão geral de outros três recursos do MPF. Um deles busca reabrir uma ação penal para condenar cinco militares acusados de matar e sumir com o corpo de Rubens Paiva, em 1971. Dos cinco militares acusados no caso, todos integrantes do antigo DOI-Codi, no Rio de Janeiro, três já faleceram (o major Rubens Paim Sampaio, em 2017; o sargento Jurandyr Ochsendorf e Souza, em 2019; e o capitão Raymundo Ronaldo Campos, em 2020) e outros dois estão em idade avançada (o general reformado José Antônio Nogueira Belham e o sargento Jacy Ochsendorf e Souza).

Moraes ainda votou pela repercussão geral em recursos do MPF para reabrir ações penais contra Luiz Mário Valle Correia Lima (conhecido como Tenente Correia Lima), Luiz Timótheo de Lima (Inspetor Timóteo), Roberto Augusto de Mattos Duque Estrada (Capitão Duque Estrada), Dulene Aleixo Garcez dos Reis (Tenente Garcez) e Valter da Costa Jacarandá (Major Jacarandá).

Todos atuaram no DOI-Codi do Rio e são acusados de sequestrar e matar o jornalista, fundador e líder do antigo Partido Comunista Brasileiro (PCB) Mário Alves. De acordo com a denúncia do MPF, ele foi capturado em janeiro de 1970, ao sair de casa à noite, levado ao DOI-Codi, onde foi torturado durante toda a madrugada e depois desapareceu. Os procuradores querem condenação por sequestro qualificado, com a mesma tese de que o crime ainda não cessou.

Por fim, Moraes deu repercussão geral ao recurso que visa a condenação do médico legista Harry Shibata, ex-diretor do IML de São Paulo, acusado de falsidade ideológica por omitir sinais de tortura no laudo necroscópico do militante Helber Goulart, integrante da Ação Libertadora Nacional (ALN), preso e morto sob tortura em 1973.

Ainda em fevereiro, Edson Fachin admitiu, no STF, o julgamento de mais dois recursos do MPF. O primeiro visa à condenação do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra e dos delegados Dirceu Gavina e Aparecido Laertes Calandra – só o último está vivo atualmente. São acusados por abuso de autoridade e pelo homicídio de Carlos Nicolau Danielli, militante sindical do PCB preso, torturado e morto em 1972 no DOI-Codi de São Paulo.

No outro recurso, o MPF quer a condenação de cinco pessoas, incluindo policiais e médicos legistas, acusados de homicídio qualificado e falsidade ideológica contra o operário e militante Joaquim Alencar Seixas, torturado e morto em 1971. Quatro dos acusados já morreram e o processo continua apenas em relação ao médico Pérsio José Ribeiro Carneiro, acusado de forma semelhante a Shibata, por supostamente ocultar sinais de tortura.

Decisões da Corte da OEA pressionam STF: Em todos esses casos, o MPF argumenta também que, em 2010, após o STF validar a Lei da Anistia, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) – tribunal que julga violações de direitos humanos nos países integrantes da Organização dos Estados Americanos (OEA) – condenou o Brasil pelo desaparecimento forçado de 62 pessoas na Guerrilha do Araguaia entre 1972 e 1974. A sentença cobrou a reparação aos familiares e responsabilização dos agressores.

Em 2018, a CIDH condenou novamente o Brasil, dessa vez pela falta de punição dos agentes que mataram e torturaram o jornalista Vladimir Herozg, em 1975, no DOI-Codi de São Paulo. Ainda tramita na Corte Interamericana um terceiro processo, para condenar o Estado brasileiro pela não responsabilização de agentes da ditadura no desaparecimento do militante político Eduardo Leite e pelas tortura de sua companheira Denise Crispim.

Todos esses processos, no âmbito da OEA, também pressionam os atuais ministros do STF a rever a Lei da Anistia. Eles foram movidos, na esfera internacional, por juristas de esquerda em aliança com familiares de vítimas do regime militar, inconformados com a anistia dada aos militares no Brasil. Argumentam que, em outros países da América Latina, houve punição a agentes da repressão de ditaduras – caso da Argentina e do Chile.


Renan Ramalho – Foto:Fellipe Sampaio/STF – Gazeta do Povo




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