O relator do projeto de lei da anistia,
Paulinho da Força (Solidariedade-SP), pisou no freio depois que os Estados Unidos aplicaram
novas sanções à família do ministro do STF Alexandre
de Moraes, e agora afirma que não tem data para apresentar ou votar a sua
versão do projeto – o certo é que ela será bem mais aguada que a proposta
original, a ponto de já ter sido apelidada de “PL da Dosimetria”, e não mais
“da Anistia”. Não só o deputado, mas vários líderes partidários já admitiram
abertamente que ministros do Supremo estão pressionando nos bastidores, tanto
sobre o conteúdo da proposta quando sobre o calendário de votação – um tipo de
interferência que poderia até configurar “atividade político-partidária”, crime
de responsabilidade previsto em lei, mas que já foi surrealisticamente
normalizada pelos políticos e boa parte da imprensa.
Que Paulinho da Força quer sabotar a anistia é
evidente; ele é próximo de vários ministros do Supremo e tem alegado que
precisa construir um projeto que não seja considerado inconstitucional mais à
frente. O argumento é fajuto: a concessão de anistia está entre as competências
do Congresso Nacional, segundo o artigo 84 da Constituição, e os supostos
crimes que seriam perdoados neste caso não constam da lista de delitos
“inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia”, descritos no inciso XLIII
do artigo 5.º. E tampouco a substituição de uma anistia por uma redução nas
penas (que, ao contrário da concessão de anistia, não é
competência do Legislativo, mas do Judiciário) seria aceitável ou justa;
concordar com algo assim equivaleria a admitir que o STF errou apenas na hora
de determinar as penas, quando na verdade todo o processo, desde o seu início,
foi viciado, com princípios básicos do direito sendo atropelados: juiz natural,
individualização da conduta, ampla defesa, nada disso foi levado em
consideração.
"A verdadeira pacificação só pode ocorrer com base na
verdade e no compromisso intransigente com o cumprimento da Carta Magna e com o
respeito às garantias e princípios democráticos"
Mas os defensores da anistia também se equivocam
quando vendem o projeto como algo que trará “pacificação” ao país, algo de que
somos obrigados a discordar. Evidentemente, a pacificação é necessária, mas ela
não virá com a anistia. E as razões para isso são simples de compreender. O
país está, hoje, dividido ao meio: uma metade considera a anistia uma forma de
trazer justiça a milhares de brasileiros injustamente perseguidos pelo Estado,
condenados por crimes que não cometeram, dos quais a Procuradoria-Geral da
República não encontrou provas, ou que podem até ter sido cogitados e
planejados, mas não tentados; a outra metade é contrária à anistia porque
considera correto e justo o que PGR e STF têm feito desde o 8
de janeiro, havendo no máximo algumas discordâncias pontuais e pouco
relevantes. Para este segundo grupo, a anistia representaria uma leniência
inaceitável com golpistas, que se veriam liberados para tentar tudo outra vez.
Eis aqui o problema: se por acaso a anistia – e não
uma simples redução de penas – fosse aprovada amanhã pelo Congresso,
continuaria a haver uma metade feliz com a decisão dos parlamentares, mas outra
metade não mudaria de opinião em um passe de mágica; ela estaria enfurecida com
o resultado. Se a anistia fosse rechaçada no Congresso, ocorreria exatamente o
mesmo. E, por mais que os defensores de uma mera redução de penas também digam
estar atrás de um meio termo que “pacifique” o país, o mais provável seria que
a aprovação de uma “dosimetria” indignasse ambos os grupos: uns considerariam
que reduzir penas não é suficiente e que a injustiça se perpetua; outros
achariam que os réus e condenados não mereciam tamanha “misericórdia”. Em
qualquer dos casos, isso está muito longe de representar qualquer pacificação.
Em que bases, então, se constrói a pacificação? Não há
pacificação possível com base na mentira ou mesmo na ilusão de uma suposta
“defesa da democracia”; chame-se a isso de apaziguamento, conformismo
ou qualquer outro nome – inclusive ditadura, com a paz aparente que reina
quando a dissidência é sufocada –, mas não de pacificação. Tampouco ela pode
ser construída sobre a relativização da Constituição e dos princípios
democráticos, substituídos pelo voluntarismo de autoridades ou pelo clamor da
opinião pública por justiçamento. A verdadeira pacificação só pode ocorrer com
base na verdade e no compromisso intransigente com o cumprimento da Carta Magna
e com o respeito às garantias e princípios democráticos.
Descartemos, portanto, os extremistas que gostariam de
ofertar a Jair Bolsonaro e seus apoiadores não apenas a prisão,
mas “um bom paredão” e “uma boa bala de uma boa espingarda”, como afirmou, anos
atrás, o ex-candidato à Presidência Mauro Iasi, do PCB, citando Bertolt Brecht.
Esses não querem pacificação alguma, e para eles a lei é empecilho a seus
objetivos. Mas há, também, uma multidão de pessoas de índole genuinamente
democrática, que defendem o cumprimento da Constituição, e que de fato julgam
que respeitá-la, neste caso específico, significaria punir com o maior rigor possível
aqueles que consideram “golpistas” – sejam os manifestantes do 8 de janeiro,
sejam os réus e condenados do dito “processo do golpe”. Esta multidão, sim, é
imprescindível a qualquer esforço de pacificação digno do nome.
São estes brasileiros que, por motivos os mais
diversos e que não nos cabe analisar agora, têm sido incapazes de reconhecer
que estão endossando não a justiça, mas o arbítrio. Eles não perceberam até
agora que, para punir com o máximo rigor aqueles considerados “golpistas”, as
instituições que deveriam proteger a Constituição a violentaram repetidas
vezes, ignorando os códigos legais e as garantias democráticas, acusando e
condenando sem provas, recorrendo a muletas jurídicas como o “crime
multitudinário”, ou criminalizando cogitações e planejamentos que a lei não
pune. Eles não viram que as raízes da atual juristocracia remontam a 2019,
quando foi instaurado o “inquérito do fim do mundo”, que levaria à criação de
uma verdadeira máquina de censura que
calou sabe-se lá quantos cidadãos, sem que a sociedade reagisse, por já não ser
capaz de entender o verdadeiro significado da liberdade de expressão.
"Muitos brasileiros de índole democrática, por motivos
os mais diversos, têm sido incapazes de reconhecer que estão endossando não a
justiça, mas o arbítrio"
Não têm faltado esforços para a sociedade brasileira
finalmente abrir os olhos à infindável lista de abusos cometidos pelo Supremo,
mas, apesar de tudo o que juristas já apontaram a respeito dos processos do 8
de janeiro, apesar de todos os arroubos de Alexandre de Moraes e seus colegas, apesar de todas as
revelações dos Twitter Files e das duas “etapas” da Vaza Toga, ainda são muitos
os que elogiam ou ao menos concordam com a atuação dos tribunais superiores em
nome de uma suposta “defesa da democracia”. É preciso fazer mais. É preciso
seguir perguntando quantas pessoas, afinal de contas, o Supremo e o TSE mandaram
calar. É preciso, especialmente, insistir na CPI do Abuso de Autoridade,
que já cumpriu todos os requisitos constitucionais para sua abertura, mas que
dorme na gaveta de um pusilânime Hugo Motta. Se hoje Eduardo Tagliaferro faz
suas gravíssimas denúncias em uma subcomissão da Câmara que a imprensa
subserviente pode se dar ao luxo de desprezar, as mesmas afirmações, feitas em
uma CPI, seriam impossíveis de ignorar. Só assim seria possível criar não uma
unanimidade, que é impossível, mas um amplo consenso sobre a realidade dos
abusos em série que foram cometidos, e que necessitam de correção.
Só pode haver pacificação real, portanto, quando vier
à tona tudo o que foi escondido do Brasil a respeito do aparato de persecução
montado e executado ao arrepio da lei, e quando os brasileiros finalmente
perceberem que haviam sido enganados; que os reais defensores da democracia, da
Constituição e do devido processo legal não eram a PGR e o STF, mas todos os
que vinham apontando por anos a erosão dos direitos e garantias constitucionais
promovida pelas instituições. Quando enfim a verdade completa surgir e for
reconhecida como tal, o Brasil estará pronto para a pacificação.
Isso não significa que devemos esperar até que a
sociedade tenha acordado para, só então, aprovarmos a anistia; quem está
injustamente na prisão ou privado de outros direitos básicos, como a liberdade
de expressão, não pode esperar. Mas ninguém pode ter a ilusão de que a anistia,
sozinha, pacificará o país. Ela não é ponto de chegada; é apenas etapa inicial
em um exaustivo, mas necessário processo que leve o Brasil a compreender – como
compreendeu em 1979, por exemplo – que estamos diante de um Supremo aferrado a
superpoderes autoatribuídos, usados para acabar com a democracia brasileira, e
que é preciso colocar um fim nesta situação, redemocratizando o Brasil mais uma
vez, como fizemos 40 anos atrás.