A operação policial no Rio de Janeiro deixou uma pilha de mortos e ares de guerra urbana. Agentes do Estado entraram em complexos controlados por facções, encontraram barricadas, drones armados e fuzis. Escolas fecharam, ônibus não circularam, moradores ficaram sitiados. Não é delinquência comum. E o amor não venceu. O problema aqui é de disputa de soberania: quem governa – o Estado ou o crime organizado?
Uma parte da imprensa e da militância de esquerda prefere mudar o foco. Um jornalista aí, cujo nome eu me recuso a citar, afirmou que os chefes locais seriam apenas “gerentes de lanchonete”, peões descartáveis. Alegou (pode até ter razão) que o verdadeiro comando estaria na Faria Lima ou em certos gabinetes políticos. Porém, esse deslocamento retórico é cômodo: transforma o inimigo concreto em inimigo invisível – afinal, nada como esbravejar contra o “sistema”. Só que o morador da favela não teme “acionistas abstratos”. Teme o fuzil do “gerente” que decide se sua loja abre, se sua filha sai de casa, se seu silêncio custa a vida.
O dilema nem é tão trágico assim. O Estado precisa usar a força para retomar territórios, porque sem soberania não há ordem possível. Política é disputa de poder. Quem controla armas e território controla a vida. Se o Estado abdica, o crime ocupa. Se ele se recusa a usar a violência legítima, sobra a violência arbitrária da facções criminosas. Não existe neutralidade: ou o Estado age, ou ele desaparece. A neutralidade é uma ilusão liberal. A pureza do Estado, uma ilusão progressista.
"O Estado precisa usar a força para retomar territórios, porque sem soberania não há ordem possível "
O Estado pode ser arbitrário? Sim. A história está cheia de abusos cometidos em nome da lei. A esquerda gosta de lembrar disso. O curioso é que a mesma esquerda que denuncia os excessos da polícia sonha com um Estado que se infiltra em todos os poros da vida. Quer um poder que regule o desejo, fiscalize palavras, puna condutas privadas, decida como o indivíduo deve viver sua sexualidade, como deve educar os filhos, o que pode ou não dizer em público.
Em nome de uma moralidade “progressista”, a esquerda constrói mecanismos de vigilância e humilhação, sempre pronta a destruir com a mesma fúria que diz repudiar na repressão estatal contra o banditismo.
Engraçado como a fé nesse Leviatã social não treme diante da perspectiva de controlar a intimidade das pessoas. Ao contrário, se fortalece: é nesse espaço, no território privado, que o progressismo pacifista exerce seu poder mais implacável. O paradoxo é este: quando se trata de subjugar a vida comum, os progressistas celebram o Estado tutor; quando se trata de enfrentar facções armadas, são pacifistas humanistas. É uma contradição grotesca: um Estado voraz para vigiar a esfera privada e, ao mesmo tempo, um Estado anêmico diante de criminosos que de fato desafiam sua soberania.
A tragédia aqui é que a barbárie criminosa foi naturalizada por essa esquerda moralista. Assassinar adolescentes em festas, executar famílias por brigas banais, extorquir comerciantes em bairros inteiros faz parte da rotina da sociedade. Para ser mais preciso: é culpa da sociedade, das estruturas sociais. Essa é de fato uma indignação seletiva: explode contra operações policiais e se cala diante da tirania do crime.
Ora, não se trata de glorificar operações sangrentas. Isso seria erro moral que não se pode aceitar. A direita que faz isso está moralmente errada. Trata-se de reconhecer que o inimigo armado existe e não desaparecerá com editoriais sentimentais. É preciso enfrentar essas facções com realismo. O Estado existe para isso.
Entre a violência arbitrária do crime e a violência regulada do Estado, o moralismo romântico é a pior escolha. A seletividade humanista insiste em ver a polícia como único problema e ignora a tragédia real: comunidades inteiras submetidas à lei das facções. Isso não é justiça. O morador não pede perfeição filosófica, pede apenas o mínimo de ordem para não viver sob um fuzil.
"O inimigo armado existe e não desaparecerá com editoriais sentimentais. É preciso enfrentar essas facções com realismo. O Estado existe para isso "
Como bom devoto agostiniano, reconheço que, neste mundo, não existe sociedade livre da perversidade do pecado. A cidade terrena sempre carregará marcas de injustiça e violência. Por isso, cabe ao poder temporal conter os piores males para que a vida humana não seja reduzida à permanente catástrofe. Diante da escolha entre a tirania criminosa e a força regulada do Estado, a prudência cristã não pode se iludir: prefere o peso de uma ordem temporal imperfeita à anarquia que devora inocentes. O critério não é a pureza moral. É a preservação do bem comum diante do mal inevitável.
O que o Brasil “soberano” precisa decidir é se continuará deixando a barbárie ser administrada pelo crime organizado ou se o Estado terá coragem de enfrentá-lo. Triste constatar que, em nome de um humanismo seletivo, preferirão fechar os olhos para os corpos que caem todos os dias, enquanto discutimos “abstrações confortáveis”. No fim, o morador sabe o que os ideólogos se recusam a admitir: ou o Estado exerce seu monopólio da força, ou deixa de existir. E, se o Estado se desfaz, o que fica é a permanente e velha guerra de todos contra todos.




