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Uma extensão do corpo humano

Uma extensão do corpo humano 

Constitui-se, um dos efeitos colaterais mais proeminentes da modernidade digital, a irrupção e a subsequente proliferação de uma vasta e heterogênea plêiade de generalistas em todas as esferas do conhecimento e da opinião. Encontram-se, frequentemente, estes indivíduos imbuídos de certezas inabaláveis e de uma vaidade desmedida, elementos que, paradoxalmente, os credenciam, no ambiente virtual, à oferta irrestrita de conselhos normativos e à disseminação de modelos comportamentais pretensamente universais. Essa vã ambição de assumir um status de especialista que não corresponde à sua formação ou experiência real adquire contornos de periculosidade ainda mais significativos quando as análises e prescrições destes novos “gurus” digitais são adornadas e instrumentalizadas pela moldura político- ideológica que professam publicamente. 

Excetuando-se o contingente restrito de profissionais do jornalismo investigativo, cuja natureza do mister exige uma imersão constante e abrangente em uma vasta gama de assuntos e especialidades, o cenário contemporâneo das mídias sociais se configura, fundamentalmente, como um incessante festival de superficialidade e besteirol. Observa-se que a adesão entusiástica e acrítica a esse conteúdo se revela tão perigosa para a integridade intelectual quanto a metáfora de caminhar inadvertidamente sobre um terreno pantanoso sem sustentação firme. Desapareceu do horizonte de análise a aplicação criteriosa do bom senso e da reserva epistemológica, embora existam, evidentemente, notáveis exceções que merecem ser registradas e valorizadas no debate público. 

Hoje, sob o pretexto de preencher um aparente vazio de ideias e de conteúdo, verifica-se a tendência perigosa e generalizada de todos falarem sobre tudo, o que culmina, tragicamente, na mútua ininteligibilidade entre os interlocutores. Vivencia-se, em decorrência, uma espécie de moderna Torre de Babel, onde a própria linguagem parece ter se despojado de sua força primordial como veículo de comunicação efetiva e de entendimento consensual. 

Surpreendente se mostra a ocorrência e a intensificação desse fenômeno, no qual o poder comunicativo da linguagem foi drasticamente reduzido, precisamente no momento histórico em que as tecnologias de comunicação baseadas na internet parecem concretizar a conexão instantânea do globo em tempo real e com riqueza audiovisual. Demonstra-se igualmente intrigante o fato de que este período de profunda dissonância e ruídos comunicacionais já havia sido previsto e teorizado em épocas pretéritas. O caos político-institucional observado no cenário nacional serve como eloquente evidência para esta tese, e a persistência de inúmeros conflitos armados e guerras em escala global atua como um reforço empírico inquestionável. 

Ocasião propícia para uma revisão e repensamento dessas previsões foi o ano de 2011, quando se celebrou o centenário de nascimento do influente filósofo e professor canadense Marshall McLuhan (1911-1980), formulador do controverso conceito de Aldeia Global. Sustentava, McLuhan, que os meios de comunicação emergentes teriam se transformado em uma extensão natural e quase orgânica do ser humano moderno. Postulava que as novas tecnologias não só interligariam o mundo geograficamente, mas também promoveriam uma unificação cultural, dada a sua capacidade de influenciar estruturalmente os modos de pensar e de perceber a realidade da sociedade. Nesse sentido, é crucial rememorar o aforismo central de sua teoria: O meio é a mensagem (McLuhan, 1964), indicando que a forma da tecnologia, e não seu conteúdo, é o agente transformador da sociedade. 

Concretizaram-se, em parte, algumas dessas projeções mcluhanianas, mas a custo de uma realidade profundamente paradoxal: jamais, em toda a história registrada, a humanidade esteve tão tecnologicamente conectada e, simultaneamente, tão psicologicamente isolada e solitária. Tal paradoxo se manifesta no comportamento dos usuários: mais de 90% dos entrevistados em pesquisas sobre o uso da internet no Brasil relataram conectar-se diariamente (TIC Domicílios, 2019), o que sublinha a ubiquidade do meio, mas não garante a qualidade ou profundidade das interações sociais que dele emanam. Fomos alimentados pela ideia utópica de uma intrínseca igualdade humana universal, mas, quando nos defrontamos com a manifestação incontornável das diferenças, reagimos com hostilidade, arredamento e polarização. Um caso paradigmático, que toca diretamente a realidade nacional, reside nos intensos debates políticos envolvendo as vertentes ideológicas da esquerda e da direita. 

Embora a divergência essencial de perspectivas entre estas duas vertentes seja intrinsecamente compreensível e inerente ao jogo democrático, o que se torna absolutamente inaceitável é a exclusão e a marginalização do Brasil e dos cidadãos brasileiros das discussões substantivas. Tal exclusão não se deve primariamente à ação da direita política, mas sim, em grande medida, a uma visão obtusa e anacrônica professada por setores das esquerdas, os quais demonstram uma recalcitrância em aceitar a transformação social e ideológica pela qual o país tem passado. Evidencia-se a incapacidade destes setores de reconhecer que a sociedade brasileira evoluiu, e, com ela, surgiram diferenças e demandas expressadas agora por uma parcela majoritária da população, que exige ser representada e ouvida no processo de deliberação política. 

A frase que foi pronunciada:Uma coisa sobre a qual os peixes não sabem absolutamente nada é a água, uma vez que não têm um antiambiente que lhes permita perceber o elemento em que vivem.”  (Marshall McLuhan) 


Circe Cunha e Mamfil –  Coluna “Visto, lido e ouvido” - Ari Cunha - Arte: prodoctor.net - Marshall McLuhan, 1974. Foto: karsh.org/photographs - Correio Braziliense

 

1 Comentários

  1. Sensacional. Parabéns nobres escritores dedicados a expor a verdade para nós leitores.

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