Está dada a largada
O Brasil atravessa um dos períodos mais delicados de sua história republicana recente. A extrema polarização política, intensificada nos últimos anos e frequentemente resumida no bordão “nós contra eles”, não é apenas um recurso retórico: tornou-se método, estratégia eleitoral e, sobretudo, lente pela qual parte expressiva da sociedade passou a interpretar a realidade. As consequências desse processo não se limitam ao debate público empobrecido; alcançam as instituições, a economia, a coesão social e a própria confiança do cidadão no regime democrático. Às vésperas de um novo ciclo eleitoral, com 2026 no horizonte, impõe-se uma reflexão serena, ainda que firme, sobre o que temos agora e sobre o que pode ocorrer se persistirmos no mesmo caminho. Binário, o discurso que divide o país entre “os do bem” e “os do mal”, “democratas” e “antidemocratas”, “progressistas” e “reacionários”, serve a um propósito claro: mobilizar bases, silenciar dissensos internos e enquadrar adversários como inimigos morais. Em curto prazo, esse expediente rende engajamento e fidelidade; em médio e longo prazos, corrói o tecido social.
O resultado é um ambiente político permanentemente tensionado, no qual a divergência deixa de ser componente legítimo da democracia para ser tratada como ameaça. O próximo passo é o Congresso, que passa a funcionar sob desconfiança mútua; o Judiciário, sob pressão constante para arbitrar conflitos que deveriam ser resolvidos na arena política; a imprensa, sob suspeita permanente; e a sociedade civil, fragmentada em bolhas informacionais que raramente dialogam entre si. Essa lógica de fratura tem efeitos concretos. A previsibilidade institucional essencial para investimentos, planejamento econômico e políticas públicas de longo prazo se deterioram. Reformas estruturais tornam-se reféns do calendário eleitoral e do cálculo ideológico. A agenda nacional cede espaço à agenda identitária e simbólica, na qual gestos e narrativas importam mais do que resultados mensuráveis. O Estado, por sua vez, amplia sua presença como árbitro moral, enquanto a confiança interpessoal e a cooperação social se retraem.
No plano social, a polarização transforma a política em identidade. Votar deixa de ser escolha racional entre projetos e passa a ser afirmação existencial. Amigos se afastam, famílias se dividem, ambientes de trabalho se contaminam. O debate público se torna punitivo: errar é imperdoável; mudar de opinião é traição; buscar consenso é sinal de fraqueza. Nesse contexto, prosperam a desinformação, o sensacionalismo e a radicalização. Há ainda um efeito menos visível, porém profundo: a naturalização do conflito como norma.
Quando o antagonismo permanente se torna rotina, a sociedade perde a capacidade de indignar-se com o excesso. Medidas excepcionais passam a ser vistas como necessárias; atalhos institucionais, como inevitáveis; a retórica de emergência, como justificativa para a compressão de liberdades. O custo democrático dessa anestesia é alto e cumulativo. As instituições brasileiras demonstraram resiliência, mas não são indestrutíveis. A repetição de crises reais ou fabricadas desgasta a legitimidade dos Poderes e alimenta a percepção de que a política é um jogo de soma zero. Nesse cenário, cresce o apelo por soluções “fora do sistema”, seja pela via do messianismo, seja pela judicialização excessiva da política. As eleições, que deveriam funcionar como válvula de renovação e pacificação, passam a ser tratadas como plebiscitos morais. O perdedor não é apenas derrotado; é deslegitimado. O vencedor não governa para todos; governa contra metade do país. Assim, cada ciclo eleitoral deixa menos espaço para a reconciliação nacional e mais combustível para a próxima disputa.
Três cenários, não excludentes, apresentam-se agora. No primeiro, a polarização se aprofunda. As campanhas intensificam o discurso de medo e demonização do adversário. A disputa se concentra menos em propostas e mais em acusações. O resultado, qualquer que seja, tende a ser contestado por parcelas significativas da sociedade, prolongando a instabilidade. Nesse cenário, o país entra em 2027 com capital político reduzido, crescimento econômico tímido e confiança institucional ainda mais abalada. No segundo cenário, surge uma tentativa de moderação, seja por fadiga do eleitorado, seja por cálculo estratégico. Candidaturas buscam ocupar o centro, prometendo diálogo e pragmatismo. O risco aqui é duplo: de um lado, a rejeição das bases mais radicalizadas; de outro, a dificuldade de governar num ambiente ainda contaminado. A moderação, para prosperar, precisará ser mais do que discurso; exigirá pactos mínimos e compromisso real com a institucionalidade. No terceiro cenário— o mais desejável, porém o mais difícil, a sociedade impõe limites à retórica do “nós contra eles”. O eleitorado passa a premiar propostas consistentes, capacidade de gestão e respeito às regras do jogo. As instituições reafirmam suas competências com autocontenção. Não se trata de eliminar o conflito inerente à democracia, mas de civilizá-lo.
O que está em disputa em 2026 vai além de nomes e partidos. Está em jogo a qualidade da democracia brasileira. Entre o “nós contra eles” e a reconstrução do espaço comum, a escolha, ainda que imperfeita e difícil, será feita nas urnas e, antes delas, no debate público que soubermos construir. A história cobrará o preço das decisões tomadas no calor da polarização. Mas também reconhecerá, se houver, a coragem de escolher a democracia como método, e não como arma.





