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Carta para Ana Cleide

Por: Conceição Freitas
Dona Ana Cleide, desde as suas primeiras declarações aos jornalistas nos dias seguintes ao assassinato de seu único filho, Leonardo, que venho me surpreendendo com a lucidez, a afirmação e a coragem da senhora (e não apenas eu, lhe asseguro). Qual será a fonte de tanto brio?, me pergunto, olhando as fotos de uma mulher de olhar ao mesmo tempo fundo, sofrido e presente. Não há ausência nos seus olhos, embora a perda sofrida tenha sido suficiente para que o chão se abrisse em abismo.
Três dias depois da morte de seu filho, a senhora ergueu-se da dor para impor sua indignada cidadania diante do perverso movimento policial militar por melhores salários : “É revoltante ouvir um policial dizer que a operação (tartaruga) é um sucesso. À custa de quê? Da morte do meu filho”.
A senhora é uma mulher de grandes gestos, viu-se logo: “Criei meu filho trabalhando três turnos e o ensinei desde cedo a trabalhar. Como direcionava a minha vida para ele, decidi fazer faculdade aos 50 anos para dar o exemplo e hoje questiono se devo continuar”.
Na edição de ontem do Correio, voltei a reencontrá-la, ainda mais magnânima e mais destemida. Um mês depois da morte de Leonardo, a senhora fez um balanço arguto das ações da polícia e dos políticos: “Só teve discurso. Não estamos precisando de politicagem, mas de políticas públicas. O processo do meu filho está exatamente como começou. Os adolescentes logo, logo sairão da cadeia, e ainda tem um foragido (maior de 18 anos). Sinto como se fosse um descaso muito grande.”
Espero amargura e a senhora nos oferece, aos brasilienses, uma afirmação de vida — da sua e da do Leonardo que ficou com a senhora. “Hoje, eu me sinto grávida de novo, o sinto dentro de mim”. Embora, se lhe fosse oferecida a possibilidade, a senhora se dispusesse a trocar a sua vida pela de seu filho, como declarou ontem à repórter Mara Puljiz.  
Se nos primeiros dias após a tragédia, a senhora se perguntava se iria continuar o curso superior, ontem ficamos sabendo que a senhora voltou à faculdade. Há um Leonardo que a acompanha: “Meu filho era uma pessoa alegre, e eu preciso ser forte. A gente pode sofrer, mas não pode viver sofrendo.”
Dor e lucidez, sofrimento e movimento, perda e reencontro têm sido seus pêndulos afirmativos, dona Ana Cleide, numa demonstração rara de que a vida é um bem em si mesmo e de que o sofrimento pode ser propositivo. Nada, porém, foi mais marcante nesses dias em que a senhora se manifestou publicamente do que a sua foto deitada na praia, de biquíni, naquele trecho em que as ondas do mar serenam na areia, o pequeno Leonardo sentado sobre sua barriga, a senhora de braços abertos, rindo para o fotógrafo e seu filho olhando pra senhora como quem está imanado com o universo. Imantados, mãe e filho.
Nenhum bandido, nenhuma polícia, nenhuma omissão, nenhuma politicagem roubará da senhora esse instante que passou a ser eterno. 
Muito obrigada. 
Conceição.

* Conceição Freitas é colunista e repórter do Correio Braziliense.

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