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A morte está com fome

Por: Conceição Freitas - Correio Braziliense - 14/08/2014

Faz dias que a morte não nos dá descanso — Gabriel García Marquez, Lelé, João Ubaldo, Suassuna, Robin Williams, Eduardo Campos. A morte tem estado esfomeada neste 2014 e com especial desejo por almas de primeira qualidade, daquelas que, quando vão embora, nos deixam menores, como espécie, como projeto civilizatório.

A morte nunca descansa, mas só a partir de certa altura da vida temos consciência de sua onipotência. Até, mais ou menos, a maturidade nos consideramos imortais — generosidade do Criador, a de nos liberar por algum tempo da onipresença da morte.

García Marquez, Lelé, João Ubaldo, Suassuna morreram de morte morrida — de doença ou de velhice. Robin Williams morreu por livre arbítrio, se é que se pode chamar de livre arbítrio o sofrimento psíquico que leva ao suicídio. Eduardo Campos se foi numa fatalidade. Parecia imune à Caetana (apelido dado pelos nordestinos à morte) — estava em ascensão política, era jovem, pai de um recém-nascido. A morte, por certo, era a última de suas preocupações. Os que desejam fortemente e lutam fortemente por aquilo que desejam estão livres do fantasma da implacável senhora, embora, reze a psicanálise, sejamos seres em eterno embate entre a pulsão de vida e a pulsão de morte.

Os nossos mortos recentes, García, Ubaldo, Suassuna…, tiveram muito mais gana pela vida do que boa parte de nós que continuamos aparentemente vivos. O que não significa que só os que tiveram seus talentos reconhecidos publicamente tenham vivido a vida bem vivida. Habitam a Terra milhões de anônimos que agarram a vida com a unha e lambuzam os beiços com o prazer de existir. Assim como, entre os célebres, há mortos-vivos.

Quem de nós haverá de saber o que foi feito da chama ardente de vida de cada um de nossos mortos desses primeiros oito meses de 2014? Estará flamejando no mistério, do qual, pobres de nós, pouco sabemos?

E, nós, como ficamos? O que faremos com o pé tão próximo do abismo? A avidez insaciável da morte parece estar nos atraindo como um imã traiçoeiro. Vejam os olhos líquidos de muitos dos que falaram à tevê nas horas em que se seguiram à notícia da tragédia que engoliu Eduardo Campos. O mais gélido dos políticos haverá de ter sentido na medula o sopro da dama de negro. O mais desatento dos humanos, o mais alienado de nós, terá sentido hoje a mão pesada e angustiante da mortalidade. 

Houve os cínicos, os semi-humanos (ou seria melhor, os exo-humanos?) que, meia hora depois, postavam na rede gracinhas de extremo mau gosto, de desrespeitoso trato com a condição humana, como a da presidente Dilma Rousseff anunciando que teria sido responsável pela morte de Eduardo Campos e repetiria a dose com os demais candidatos. De que matéria são feitos esses internautas? Temo que estejamos convivendo graciosamente com eles, como se fossem iguais a nós, os que teimamos em honrar, minimamente, a nossa existência sobre a Terra. 

Eu, que não nomeio o mistério, tenho fortes evidências de que todos deles — García, Ubaldo, Lelé, Suassuna, Williams, Eduardo Campos — deixaram entre nós marcas que dão um sentido ao sem sentido do viver.

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