Politicagem e
exigências para que João da Gama Filgueiras Lima ficasse de fora do
acompanhamento de construções fizeram o arquiteto se decepcionar nos últimos
dias de vida. Hoje, faz um ano que ele se foi, mas as obras e ideias dele
seguem com destaque pelo mundo afora
O diagnóstico final era de metástase hepática, mas
foi um contínuo de desencantos que derrotou definitivamente o arquiteto João da
Gama Filgueiras Lima, 82 anos, que havia mais de uma década resistia a um
câncer de próstata. O material que edificou o desgosto crescente de Lelé tem
nome: os empreiteiros que dominam a construção civil e contaminam os meandros
dos Três Poderes no país, nas suas mais variadas instâncias. É o que conta a
filha dele, a arquiteta Adriana Filgueiras Lima.
Hoje, 21 de maio, completa-se um ano da morte de um dos mais importantes arquitetos brasileiros. “Sem dúvida, ele foi fundamental para a formação dos arquitetos e da civilização brasileira. Lelé, Oscar Niemeyer, Lucio Costa são arquitetos que ultrapassaram os limites de seu ofício. Tinham um projeto de país mais livre, mais ético, mais humanista”, diz o professor Ciro Pirondi, da Escola da Cidade, instituição paulista de formação de arquitetos e urbanistas.
Era a arquitetura que mantinha Lelé vivo. “Eu sabia que se não trabalhasse, ele
ia morrer”, conta Adriana, que trabalhava com o pai no Instituto Habitat.
“Olha, minha filha, as pressões são tão grandes contra a minha proposta que vai
ser impossível trabalhar”, ele disse a Adriana, no começo do ano passado, sobre
os destinos do projeto da sede do Tribunal Regional do Trabalho da Bahia. E,
desde então, se deixou definhar, a não mais responder à quimioterapia feita com
a mais recente geração de medicamentos. Até que, internado na unidade da Rede
Sarah em Salvador, não quis mais comer nem beber. Entregou-se à morte.
A reação das empreiteiras ao projeto da sede do TRT de Salvador foi a
derradeira das grandes decepções nos últimos anos de vida de Lelé. É o que conta
Adriana, parceira no desenvolvimento e acompanhamento da obra. “Os empreiteiros
não têm interesse em construir um projeto muito detalhado, dá muito trabalho e
reduz a possibilidade dos aditivos por falta de informações técnicas da
execução”. Somada a essa má vontade, há dentro do TRT uma disputa entre dois
grupos, segundo Adriana. Um dos grupos, favorável ao projeto de Lelé, construiu
um dos módulos. Com a assunção do outro grupo, a proposta foi rejeitada. “Houve
uma pressão louca, uma perseguição. E papai fazendo quimio”. Uma parte do
conjunto foi construída. “É lindo. Foi erguido num dos últimos terrenos com
vegetação virgem de Mata Atlântica. Os edifícios nascem no meio da mata, como
árvores, e a circulação é feita em passarelas suspensas.”
Normas
Outra desilusão que definhou o mais respeitado arquiteto com formação tecnológica do país foi o projeto da Casa da Mulher Brasileira, pedido a ele pela presidente Dilma Rousseff, mas que o Tribunal de Contas da União vetou, alegando que, embora o profissional tivesse notório saber, a execução teria de se enquadrar nas normas da licitação. No frigir do cimento, tinha de se submeter ao modus operandi das empreiteiras — preços altos e baixo custo. “Resultado: fizeram uma caricatura do projeto de meu pai”.
Outra desilusão que definhou o mais respeitado arquiteto com formação tecnológica do país foi o projeto da Casa da Mulher Brasileira, pedido a ele pela presidente Dilma Rousseff, mas que o Tribunal de Contas da União vetou, alegando que, embora o profissional tivesse notório saber, a execução teria de se enquadrar nas normas da licitação. No frigir do cimento, tinha de se submeter ao modus operandi das empreiteiras — preços altos e baixo custo. “Resultado: fizeram uma caricatura do projeto de meu pai”.
Antes do projeto da Casa da Mulher Brasileira, outro dissabor. Também a convite de Dilma, Lelé fez um projeto-modelo para o Minha Casa, Minha Vida, alternativa às caixas de fósforo enfileiradas em locais ermos sem nenhuma infraestrutura urbana. O arquiteto chegou a desenvolver um protótipo com estrutura metálica e argamassa armada para ser replicada em todo o país. Incluía creche, escolas, área de lazer e bonde para áreas muito íngremes. “Habitação”, disse o arquiteto à revista AU, “não é só o lugar onde você mora. É um conjunto de coisas que fazem você sobreviver, inclusive o trabalho”.
O TCU vetou com os mesmos argumentos: o arquiteto não poderia desenvolver os projetos por meio de um contrato direto entre o governo federal e o Instituto Habitat. Só as empreiteiras poderiam ser contratadas para a execução do Minha Casa, Minha Vida. O instituto, então, teria de ser contratado por uma construtora para fazer valer o projeto tal qual detalhado pelo arquiteto. Seria o mesmo que dizer a Oscar Niemeyer que ele não poderia desenvolver e acompanhar os projetos dos palácios de Brasília ou que Lucio Costa não teria permissão de meter o bedelho nas obras da capital. Total e irrestrito poder às construtoras.
Em entrevista inédita que o Conselho de Arquitetura e Urbanismo publica hoje no site caubr.gov.br, Lelé considera fundamental que o arquiteto acompanhe a obra: “Infelizmente, as construtoras não têm mais aquele interesse de fazer melhor, tem interesse só nos lucros. O diálogo está muito difícil com as empreiteiras.”
Lelé era um arquiteto para um país que se perdeu na estrada ou nas empreitadas. Tanto ele quanto tantos outros de sua geração “sabiam fazer um navio, mas, na verdade, queriam fazer a viagem”, na metáfora náutica de Ciro Pirondi. Amigo de Lelé durante 25 anos, Ciro mesclou contentamentos aos desassossegos do arquiteto. Sob a inspiração de João Filgueiras, a Escola da Cidade criou um curso técnico destinado a adolescentes em situações de vulnerabilidade, do qual sairão capacitados para atuar com a tecnologia de argamassa armada, madeira aço e plástico. A escola formará técnicos em desenho da construção civil habilitados a executar obras com a tecnologia que Lelé desenvolveu. “Queremos formar não apenas um técnico, mas um cidadão com uma cabeça um pouco mais humanista”, entusiasma-se Ciro. A Escola de Humanidades João Filgueiras Lima — Fábrica deve começar a funcionar em 2016, em São Paulo.
Vivo
Lelé morreu, mas está vivo na Suíça, nos Estados Unidos e na Alemanha. Em Zurique, o arquiteto Adalberto Vilela dedica-se a um doutorado sobre a pré-fabricação na construção civil “com foco na contribuição singular de Lelé na segunda metade do século 20 no Brasil”, diz o doutorando da Escola Politécnica. O orientador do brasileiro, Laurent Stalder, já conhecia as realizações de Lelé. A dissertação de mestrado de Vilela sobre as casas do mestre será transformada em livro pela Editora da UnB.
Lelé está no MoMa, com algumas das mais importantes obras, entre as quais, as muitas unidades da Rede Sarah, exibidas na exposição sobre arquitetura moderna latino-americana. E está na Galeria de Arquitetura de Hamburgo na mostra João Filgueiras Lima — Lelé: a cultura dos materiais e a arte da produção, até 11 de junho.
Em Brasília, Lelé está nas unidades da Rede Sarah, no Beijódromo, no Hospital Regional de Taguatinga, nos edificios Camargo Corrêa e Morro Vermelho, também no SCS. Em residências e alguns outros prédios institucionais. Deveria estar na sede da Fundação Athos Bulcão, projeto pronto, à espera de quem banque a construção.
Procurado, o TRT da Bahia encaminhou um resumo das observações da filha de Lelé, Adriana, a Ana Lucia Bezerra, presidente do Tribunal baiano entre 2009 e 2011 e responsável pela execução do único módulo do projeto do arquiteto que foi construído: “Ele foi um gênio da arquitetura. Deixou um belo legado, um projeto de prédios ecologicamente corretos. Um dos módulos está praticamente construído e já pode ser admirado como uma obra de arte”.
Por: Conceição Freitas – Correio Braziliense