Gervásio está há dois meses em uma casa em Vicente Pires:
saudades da esposa, morta há um ano, e da rotina do trabalho
Considerado um dos mais importantes fotojornalistas
brasileiros, Gervásio Baptista mora recluso em um abrigo para idosos. Apesar da
idade avançada e de lapsos na memória, ele adora conversar, principalmente
quando o assunto é a profissão
O homem magro, de estatura baixa, careca, abre o sorriso e
estica os braços compridos ao avistar o amigo à espera dele, em uma sala do
abrigo para idosos. A caminho dos 100 anos, o fotógrafo Gervásio Baptista, que
nunca quis revelar a idade exata, apressa os passos para receber o também
fotógrafo Hermínio Oliveira, 70. A troca de carinhos é seguida por brincadeiras
e lembranças dos tempos de Revista Manchete e Radiobrás, onde trabalharam
juntos. “O Gervásio é esse ser amável e bem-humorado”, ressalta Oliveira.
No meio do campo de batalha, na Guerra do Vietnã, em
cobertura para a Manchete
Os
funcionários e nove idosos do abrigo assistem atentamente ao reencontro. Quase
todos já ouviram alguma história de Gervásio nos dois meses em que ele está
naquela casa da Colônia Vicente Pires, adaptada para receber homens e mulheres
com limitações impostas pela idade e por doenças do corpo e da mente. Alguns
desconfiam das peripécias do baiano. Por isso, fazem questão de testemunhar a
entrevista que virá.
A última foto pública do presidente Tancredo Neves foi
feita pelo profissional baiano
Gervásio
Baptista é o autor de algumas das mais famosas imagens de presidentes
brasileiros. Entre elas, a de Juscelino Kubitschek acenando com a cartola na
inauguração de Brasília, capa da extinta Manchete. A imagem com os anexos do
Congresso Nacional ao fundo correu o mundo. Ele clicou de Getúlio Vargas a Luiz
Inácio Lula da Silva, eventos nacionais e mundiais, sete copas do mundo e 16
concursos miss universo, nos tempos áureos do evento. Testemunhou guerras e
revoluções.
Precocidade
Os
políticos não têm consenso sobre o início da carreira de Gervásio. O
ex-presidente Fernando Henrique Cardoso costumava dizer que foi nos tempos de
dom Pedro I. Quando FHC fez tal comentário na presença do ex-ministro Pratini
de Moraes, Gervásio elogiou a “memória prodigiosa” do então presidente da
República. O ex-senador Antônio Carlos Magalhães afirmava que o profissional
fotografou a Santa Ceia. “E o senhor era o meu repórter”, rebatia Gervásio,
sempre que estava presente. Além de baianos, ambos eram contemporâneos, como o
fotógrafo lembrava a ACM.
A verdade
é que, quando criança, Gervásio brincava com caixas de fósforo como se fossem
câmeras fotográficas. Abria e rabiscava o que via dentro. Ao completar 9 anos,
o pai sugeriu a ele, no tempo das férias, trabalhar no laboratório de um amigo,
em Salvador, onde moravam. “Meu pai dizia que um homem sem profissão é incompleto,
que não pode ter uma família”, lembra. Gervásio seguiu a indicação. No Foto
Jonas, o menino, então filho único, aprendeu, em um mês, todo o processo
químico da revelação e da cópia em papel.
As portas
do fotojornalismo se abriram quando apareceu no estúdio o político Rui Santos.
Ele pediu uma foto 3x4. Como todos os “retratistas” estavam ausentes, Gervásio
se ofereceu para atendê-lo. Muito pequeno para fazer o registro do cliente, ele
subiu em uma cadeira para alcançar o visor da câmera. “Tirei a foto e corri
para o laboratório. Ele (Santos) olhou para mim e disse que eu era um danado.
Perguntou-me se queria trabalhar no jornal Estado da Bahia”, conta Gervásio. No
dia seguinte, aos 12 anos, Gervásio estreou como fotógrafo-assistente no
periódico soteropolitano. Dono da publicação e dos Diários Associados, Assis
Chateaubriand logo enxergou o talento no menino. A convite do patrão, em 1950,
ele se mudou para o Rio de Janeiro, a fim de trabalhar em O Cruzeiro. As fotos
mexeram com a maior concorrente da revista dos Associados, a Manchete, a ponto
de Adolpho Bloch, proprietário da publicação carioca, o contratar para o
primeiro número, em 1952.
Pedido ao presidente JK para acenar com a cartola: dois
cliques e uma imagem histórica
Vida e morte
Pela Manchete, ele registrou, semana a semana, a construção
de Brasília. E, dessa cobertura, o mais emblemático registro é o de JK com a
cartola. Assim como ela, as fotos feitas por Gervásio no funeral de Getúlio
Vargas, em São Borja (RS), em 26 de agosto de 1954, também circularam mundo
afora. No Brasil, até provocou um número especial da Manchete. Discreto em
relação aos segredos da vida profissional, principalmente no que diz respeito à
intimidade dos presidentes que acompanhou em cerimônias e viagens pelo Brasil e
pelo mundo, ele não poupa Jânio Quadros. “A Manchete queria uma foto especial
de Jânio. Ficamos quatro horas no estúdio. A minha intenção, com as técnicas de
iluminação, era disfarçar os olhos vesgos dele. O (Adolpho) Bloch apareceu e
perguntou como estava a sessão. ‘Um saco. Esse fotógrafo é um ditador. Só de me
dá ordens’, reclamou Jânio. Soltei uma piada: ‘Presidente, quem mandou vossa
excelência ter os olhos tortos?’ Jânio retrucou na mesma hora: ‘Viu? Ainda por
cima é atrevido’. Enfim, saiu a foto. Consegui nivelar os olhos dele”, recorda,
com uma risada sutil.
Gervásio
também fez importantes registros de líderes mundiais, como o cubano Fidel
Castro, em 1960. “O meu primeiro encontro com Fidel foi em 1960, no primeiro
aniversário da revolução cubana. Nós nos reencontramos anos depois na sede da
Organização das Nações Unidas, em Nova York. Eu estava lá como fotógrafo
oficial da Presidência da República, para fazer as fotos de José Sarney. Para
minha surpresa, depois de 25 anos, Fidel ainda se lembrava de mim. Ao me ver,
ele afirmou: ‘Yo lo conozco’. Acho que ele se lembrou da minha aparência. Na
primeira vez, ficou cismado porque eu era moreno claro, mas tinha o cabelo
‘ruim’. Quis saber de onde eu tinha vindo.”
O baiano
também cobriu a Revolução dos Cravos, em Portugal, em abril de 1974; a queda do
presidente argentino Juan Domingo Perón (1955); e a Guerra do Vietnã
(1955-1975). A profissão e as viagens para países comunistas lhe renderam
problemas com os militares brasileiros. Durante a ditadura, Gervásio acumulou
passagens pela prisão. Mas, por não ter engajamento político, sempre foi
libertado rapidamente e sem maiores consequências.
Uma prova
Com o fim
da ditadura, Gervásio recebeu o convite para se tornar fotógrafo oficial da
Presidência da República. Mas aquele que seria o seu chefe, Tancredo Neves, não
chegou a tomar posse. Nem por isso, Gervásio deixou de fazer uma histórica
imagem do mineiro. A internação repentina do primeiro presidente civil (eleito
pelo Congresso Nacional) após décadas levou centenas de jornalistas a fazer
plantão na porta do Hospital de Base do DF, em março de 1985. Em uma tentativa
de acabar com boatos da morte de Tancredo, o chamaram para fazer uma foto
exclusiva dele ao lado da equipe médica. É a última imagem pública de Tancredo
vivo.
Trabalhou
para José Sarney e depois, por anos, fez jornada dupla, trabalhando de manhã na
Radiobrás e à tarde no Supremo Tribunal Federal. Nesse período, só chegava em
casa depois das 22h. Ele dividia o apartamento da 105 Norte com a mulher, os
dois filhos e os dois netos. A rotina da família começou a mudar há um ano, com
a morte da carioca Ivonete, com quem Gervásio viveu casado por quatro décadas.
Quando
perdeu a companheira, o baiano dava sinais de depressão por causa da
aposentadoria. Apesar de ter trabalhado muito mais do que o necessário para
conquistar tal direito — em função de a Manchete nunca ter depositado sua parte
do INSS —, o fotógrafo fazia da profissão uma das razões de existência. A
partida de mulher, aos 78 anos, trouxe uma tristeza profunda, insuperável, ao
ponto de a filha tomar a decisão de buscar ajuda médica, que levou à internação
dele em um lar para idosos, dois meses atrás, com quadro de depressão profunda
e sinais claros de perda de memória.
"Todos a quem fotografei eram mais importantes do que
eu. Nunca fui famoso, nunca fui rico e nunca fotografei por dinheiro. Quem faz
isso não é um bom fotógrafo. No jornalismo, só ganhei bons amigos"
Dinheiro e fama
Como
destacam todos os que trabalharam com ele, o homem considerado um ícone no
fotojornalismo em momento algum se gaba da fama. Aliás, faz questão de negá-la.
“Todos a quem fotografei eram mais importantes do que eu. Nunca fui famoso,
nunca fui rico e nunca fotografei por dinheiro. Quem faz isso não é um bom
fotógrafo. No jornalismo, só ganhei bons amigos”, afirma. Para ele, fotografar
está relacionado às emoções. Um bom fotógrafo, ensina, tem que conhecer as
técnicas dessa arte, o equipamento e, acima de tudo, ter sensibilidade. “Clico
tudo o que me aguça o sentimento.”
O
desapego com dinheiro levou Gervásio a uma aposentadoria mirrada, com nenhum
luxo. Ele nunca recebeu um centavo pelos direitos autorais da sua obra. Sequer
tem cópias das principais fotos. Mas não se chateia. Diz ter aproveitado tudo
que a carreira profissional lhe proporcionou, mas sem falar em saudades.
“Saudosismo não leva ninguém ao céu. A bondade sim”, prega. Perguntado sobre se
ressentir por não ter feito alguma imagem, ele só lembra de uma: “Queria ter
fotografado o Mao vivo”. Ele se refere a Mao Tsé-Tung, líder da Revolução
Chinesa, arquiteto e fundador da República Popular da China, presidente do país
desde a sua criação, em 1949, até a sua morte, em 1976. Em tempo: Gervásio não
clicou Mao vivo, mas cobriu as homenagens póstumas e o enterro dele, na China.
Ídolo francês
Das mais
fortes emoções da vida, Gervásio cita o encontro com o ídolo na fotografia: o
francês Henri Cartier-Bresson. “A gente se conheceu quando eu fui a Paris fazer
um curso de 15 dias em um laboratório. Ele é o papa do fotojornalismo.” Esse
foi um dos poucos cursos de Gervásio, que apenas concluiu o ensino fundamental,
mas é considerado decano da profissão pela Associação Brasileira de Imprensa
(ABI). “O meu grande professor foi o Jonas, do Foto Jonas. Eu não tinha
sensibilidade, mas tinha muita vontade. A sensibilidade foi aguçada com o
tempo”, comenta.
Dos
tempos das máquinas fotográficas mecânicas e dos negativos, ele garante ter
saudade apenas do “furo” jornalístico. “Sempre me adaptei rápido à tecnologia.
Os equipamentos digitais fizeram e fazem o jornalismo crescer muito, pois
permitem muitas possibilidades. Mas eles e a internet acabaram com o furo de
reportagem, com aquela busca pelo exclusivo.”
Mesmo com
93 anos — em uma entrevista, anos atrás, a mulher dele revelou a data de
nascimento do marido: 1º de junho de 1922 —, Gervásio faz planos. Pretende sair
do abrigo e voltar a fotografar. Antes, quer ir ao evento de lançamento do seu
livro de fotografias e memórias, do qual faz segredo sobre a autoria e a
previsão para chegar às livrarias. Católico apostólico baiano, como se
apresenta, reza bastante. Também procura saber dos resultados dos jogos do seu
Botafogo. Os responsáveis pelo abrigo dizem que conversar é um dos melhores
remédios para ele. Por isso, estimulam os amigos do jornalismo a o procurarem,
pois adora contar histórias da profissão. E se alguém quer ouvir mais das suas
peripécias, é preciso ir até ao seu encontro, pois não há previsão de alta.
Mas, certamente, não faltarão gargalhadas, abraços e ótimas lembranças.
Gervásio fala - Bronca de Chatô
“Mestre
Brito era o fotógrafo principal do Estado da Bahia. Ele me ensinou os meandros
da fotografia e do jornalismo. Um dia, o doutor Assis Chateaubriand agendou uma
visita a Feira de Santana para receber a Comenda do Vaqueiro. Mestre Brito
adoeceu e o doutor Odorico Tavares (diretor do Estado da Bahia) pediu para eu
fazer a cobertura fotográfica da visita. Aos 12 anos, lá fui eu, com minhas
calças curtas. Fui ao hotel onde estava o doutor Assis. Encontrei os quatro
seguranças dele na frente do hotel. Apresentei-me. Eu parecia o cão chupando
manga ao meio-dia, na porta da igreja. Quando o doutor Assis saiu do hotel, os
quatro sujeitos o levantaram para montar no cavalo. Fiz três fotos. Doutor
Assis reclamou: “Ô, menino, onde é que você vai com essa fotografia?”.
Expliquei que era ajudante de fotógrafo do jornal dele. “Você quer me
desmoralizar? Venho receber uma comenda de vaqueiro e você fotografa quatro
sujeitos me carregando?”. Então, pediu as fotos. Mas não dei.”
JK e a cartola
“A
Manchete era um dos poucos veículos que apoiavam a construção de Brasília. Eu
vivia viajando com o doutor Juscelino. Ele ia fazer inspeção nas obras, lá ia
eu. Tinha acesso a ele. No dia da inauguração de Brasília, viemos uma equipe do
Rio para cobrir a festa. Quando eu estava saindo, Otto Lara Resende (diretor de
redação) disse que tinha um prêmio de 50 mil réis para quem fizesse a melhor
foto. Na hora em que JK subiu a rampa, eu, ao lado dele, disse: ‘Presidente,
pose para a capa de Manchete! Dê uma parada aí que vou fazer a foto’. Pedi ao
Jango, que estava ao lado de Juscelino, para sair um pouco pro lado. Mirei o
Congresso, centralizei o presidente em pé e pedi para ele tirar a cartola. ‘Vai
ser rápido, vou fazer uma ou duas fotos e o senhor desmancha’. Ele concordou.
Bati duas fotos e ele desmanchou aquela pose. Era para que os colegas de outros
veículos não tivessem tempo de registrar a mesma imagem. Ganhei os
cinquentinha.”
Tancredo no hospital
“Fiz
amizade com Tancredo Neves no enterro de Getúlio (Vargas). Quando ele foi
eleito presidente, me convidou para ser o fotógrafo oficial da Presidência.
Antes da posse, ele ficou doente. Eu dava plantão com vários colegas em frente
ao Hospital de Base (onde Tancredo foi internado). Um segurança me chamou no
canto e disse que eu estava sendo solicitado no 6º andar. Lá, encontrei
Tancredo e cinco médicos, prontos para uma fotografia. Lembro que um dos
médicos, o doutor João Batista Resende, estava abraçado ao Tancredo. Pedi para
ele tirar a mão das costas do presidente, pra não dizerem que estava sendo
amparado. Foi uma honra saber que o presidente confiava em mim àquele ponto. A
imagem desmentiu o boato de que Tancredo já estava morto.”
Por: Renato Alves – Fotos: Andre Violatti/Es.CB/D.A.Press – José
Varella/CB/D.A.Press – Arquivo –EBN – Correio Braziliense