"Brasília enfrenta um problema estrutural. Há
duas ou três redes de postos que têm 50% do mercado da cidade"
Depois da Operação Dubai, que desbaratou um esquema de combinação do valor da gasolina e do etanol, o presidente do Cade revela, em entrevista ao Correio, detalhes das investigações. Ele acredita que o preço nas bombas vai cair 20%
Presidente do órgão encarregado de
garantir a livre concorrência e de investigar esquemas de combinação de preços,
Vinícius Marques de Carvalho acredita que o valor dos combustíveis em Brasília
vai cair pelo menos 20% depois do escândalo envolvendo donos de postos na
cidade. O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) participou
ativamente da Operação Dubai, que, em parceria com a Polícia Federal e com o
Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado do MP (Gaeco),
desbaratou um suposto esquema criminoso. “Se, além de desestabilizar o cartel,
a gente conseguir implantar medidas estruturais, com uma nova legislação, não
tem por que essa queda dos preços não acontecer. A gente espera ter um mercado
concorrencialmente mais saudável e com preços mais baixos para os consumidores
de Brasília”, afirma.
Vinícius Marques explica que a
concentração de mercado no segmento de combustíveis no DF é atípica, o que é
lesivo para o consumidor. “Brasília tem um problema estrutural. Há duas ou três
redes que têm 50% do mercado da cidade”, justifica. “Nos últimos anos, o consumidor
de Brasília foi aviltado com o combustível mais caro do país. Está se
configurando a hipótese de que isso seja decorrência da existência de um cartel
de fato, da combinação de preços”, garante o presidente do órgão. “É possível
que essa estrutura de mercado tenha se mantido assim porque a atuação dos
postos foi eficaz em impor seus interesses em detrimento dos interesses da
população”.
"Como decisão decorrente da condenação, o Cade
pode mandar empresas se desfazerem de parte dos postos"
Em 2002, a Câmara Legislativa realizou
uma CPI, que indicou praticamente os mesmos fatos trazidos à tona pela Operação
Dubai. Por que o desfecho demorou tanto?
Combater cartéis de postos têm sido uma
prioridade no Cade há muitos anos. Quase 40% das condenações que nós temos em
cartéis são de postos. Temos hoje cerca de 30 processos com condenação, além de
10 processos pelo menos ainda tramitando. Cartel é algo difícil de provar em
qualquer mercado. As pessoas normalmente têm uma avaliação de que, se elas
passarem em duas ou três lojas e virem o mesmo preço, isso configura a
existência de um cartel. E, como nos postos o preço é transparente, já que você
passa na rua e vê o letreiro com os valores, essa sensação aumenta. Quando há
mercado como o de combustível, que é um produto homogêneo, com vários pontos de
venda, a tendência é que haja mesmo pouca variação de preços. Até em mercados
em que há muita concorrência, os preços tendem a ser semelhantes, porque os
empresários colocam o valor muito perto do custo. Não é porque preço é parecido
que há cartel.
Então como comprovar a existência de um
cartel?
Preços parecidos, mas com margem alta
de lucro, como é o caso de Brasília, podem representar um indício de cartel.
Para condenar, entretanto, é preciso comprovar o acordo. O que acontece aqui em
Brasília foi que, como houve CPI, houve processos abertos no Cade há muito
tempo, a população e a imprensa inteira falam sobre o assunto, quem comete o
ilícito sabe que está na mira e vai tentar não deixar brecha. A investigação
tem que ser muito minuciosa e silenciosa. Normalmente, nas primeiras
investigações, a gente pede autorização judicial para busca e apreensão.
Em um mercado como o de Brasília, sobre
o qual pairam suspeitas de cartel há muito tempo, como investigar as denúncias?
Em casos como esse, é preciso de fato
que as investigações sejam mais profundas. Porque senão os empresários pensam
em estratégias para desviar as apurações. Nesses casos, a gente lança mão da
parceria que temos com as polícias e com o Ministério Público. Com uma
investigação criminal, podemos lançar mão de outros instrumentos como quebra de
sigilo ou interceptação telefônica. Com essa parceria, a estratégia passa a ser
coordenada entre todos. Aqui em Brasília, a atuação conjunta começou a partir
de 2012. Entendo a preocupação da sociedade com a demora das investigações, mas
foi importante para termos um processo robusto.
Quais são as peculiaridades do mercado
de Brasília?
Brasília tem um problema estrutural.
Temos duas ou três redes que têm 50% do mercado da cidade. E eu falo em número
de postos, nem falo em faturamento, porque ainda não temos esse dado. Quando
você tem uma investigação de cartel e há essas condições estruturais no
mercado, a preocupação é de, ao mesmo tempo, investigar e coibir. A gente quer,
depois ou durante essa investigação, desestabilizar o cartel e ter um mercado
competitivo depois. Eu acho que não existe nenhuma outra cidade com mais de 500
mil habitantes em que uma rede tenha quase metade do mercado.
Mesmo depois da CPI e da condenação do
cartel no Cade, em 2004, o mercado não mudou...
É preciso reunir um conjunto robusto de
indícios. Às vezes, a escuta telefônica dura mais de um ano, para só depois
disso o Judiciário autorizar medidas como busca e apreensão ou prisão. Temos
uma preocupação muito grande com a lisura do processo. Temos uma preocupação
estrutural com o mercado, por isso iniciamos diálogo com o governador para a
elaboração da lei distrital permitindo a instalação de postos de combustíveis em
supermercados e shoppings. É uma medida possível no curto prazo. O possível
cartel, ele tem que passar por um processo, em que vai haver ampla defesa,
contraditório. Mas, se comprovada a existência do cartel, uma decisão possível
prevista na lei é mandar vender ativos. Como decisão decorrente da condenação,
o Cade pode mandar empresas se desfazerem de parte dos postos. E isso não tem
nenhum impacto na questão da multa, que será aplicada se comprovada a
existência do cartel. A Superintendência Geral já tem autorização para ter
acesso a todo material apreendido. Se não houver intercorrência judicial, o
processo dura de dois a três anos.
De que forma o cartel atinge os
interesses do consumidor?
Nossa principal preocupação como órgão
de defesa da concorrência é defender o consumidor. Nos últimos anos, o
consumidor de Brasília foi aviltado com o combustível mais caro do país. Está
se configurando a hipótese de que isso seja decorrência da existência de um
cartel de fato, da combinação de preços. Há indícios no processo de que isso
envolvia a preocupação de ter um preço do etanol bastante alto para forçar as
pessoas a consumirem gasolina, que teria uma margem maior de lucro.
O que o processo aberto já
demonstrou?
Houve uma condenação com base na tese,
lastreada em fatos, de que a conduta identificada era anticompetitiva. O
sindicato e os postos foram em busca de uma lei que viabilizasse o fechamento
do mercado de Brasília, por meio da proibição do funcionamento de postos em
supermercados e shoppings. O mercado da capital tem uma peculiaridade, já que
existe um problema estrutural, que é a dificuldade de acesso a terrenos para
postos de combustíveis. A permissão de instalação de postos em supermercados é
algo que acontece em todas as capitais. Não existe nenhuma cidade grande que
tenha lei impondo essa restrição. Aqui em Brasília a abertura do mercado é
essencial.
O lobby político exercido pelo cartel,
com financiamento de campanhas, foi fundamental para que a combinação de preços
perdurasse por tanto tempo?
Em todos os mercados, as legislações e
as regulações são ativos concorrenciais. Normalmente, as empresas e associações
buscam leis para proteger seus negócios e setores, ou para criar empecilhos à
entrada de novos concorrentes, isso acontece. As empresas irem ao Poder
Legislativo demandar legislações é direito de petição. Os poderes Legislativo e
Executivo é que devem observar em que medida essas demandas coincidem com o
desejo da população, com o interesse público. Nesse caso, é possível que essa
estrutura de mercado tenha se mantido assim porque a atuação dos postos foi
eficaz em impor seus interesses em detrimento dos interesses da
população.
Essa pressão dos empresários contra a
lei liberando postos em supermercados foi importante para a investigação sobre
o cartel?
Foi realizada uma operação de busca e
apreensão na sede do sindicato e foram encontrados documentos que demonstravam
que a motivação do lobby contra a lei era anticompetitiva. Não tinha nada a ver
com o discurso que eles faziam de defesa da questão ambiental, por exemplo. E
foi com base nessa intenção claramente anticompetitiva que se abriu o processo
e houve a condenação. E, agora, felizmente, houve a confirmação por parte do
STJ. A multa a ser aplicada é com base no faturamento no ano anterior à
instauração do processo. Isso obviamente será atualizado pela Selic. Deve ser
uma multa na casa das dezenas de milhões.
De que forma a liberação de postos em
outros estabelecimentos ajuda o mercado?
À medida que houver um choque de
oferta, a tendência é que preço caia. Esse é um momento particularmente
importante para acontecer a mudança. Se havia cartel, ele foi desestabilizado.
O momento é promissor para população se tivermos a adoção de medidas.
A cobrança de taxas pela instalação de
postos em terrenos inicialmente com outra destinação aumenta os custos para os
empresários interessados em entrar no setor, mas é exigida pela
legislação ambiental. Essa cobrança pode inviabilizar a abertura do mercado?
Em outros estados onde houve a
liberação para postos em supermercados e shoppings, nada disso viabilizou novos
entrantes no mercado. De maneira nenhuma vou dizer que tem que se desconsiderar
a legislação urbanística, mas o governo pode buscar algum tipo de mecanismo que
organize essa entrada e a viabilize, para que a lei não seja inócua.
Como foi feito o cálculo que estimou em
R$ 1 bilhão o prejuízo para os consumidores?
O cálculo do dano do cartel é muito
importante. Ele não aparece em um primeiro momento como estratégia de
investigação porque primeiro provamos que o cartel existe, demonstramos quem
participou e depois tentamos auferir os benefícios que eles extraíram do
consumidor. Todos os estudos internacionais dizem que o cartel, para se
viabilizar, precisa colocar pelo menos 20% de sobrepreço. O cartel é algo que
tem custo, é preciso monitorar os dissidentes, tem o custo de organizar, o
risco de ter processo depois. E 20% é o piso, não o teto. O sobrepreço pode ser
maior.
Com a condenação do cartel e com a
criação de leis que permitam a abertura do mercado, é possível estimar então
uma queda de pelo menos 20% no preço dos combustíveis?
Acredito que sim. Se a gente conseguir,
além de desestabilizar o cartel, implantar medidas estruturais, com uma nova
legislação, não tem por que isso não acontecer. A investigação em Brasília
revelou indícios da atuação do suposto cartel também na etapa da distribuição
de combustíveis. Normalmente, isso ocorre mais na revenda, nos postos. Se for
comprovada a existência de um cartel também na etapa dos distribuidores,
teremos um cartel de dupla margem. Os distribuidores aumentam os preços para os
postos, que aumentam para o consumidor. É preciso atacar os dois. Com isso, a
gente espera ter um mercado concorrencialmente mais saudável e com preços mais
baixos.
Quando os preços vão cair?
A gente teve casos em que isso
aconteceu logo depois de uma operação de busca e apreensão. Em outros casos,
isso aconteceu um tempo depois. Estamos monitorando. Em João Pessoa, quando
fizemos operação em 2007, os preços caíram 30% na semana seguinte. É uma
regulação do mercado, depende de como o cartel funcionava. Às vezes, quando o
cartel atua por muito tempo, leva um tempo para que haja um ajuste positivo no
mercado.
Por: Helena Mader – Fotos: Antonio
Cunha/CB/D.A.Press - Correio Braziliense