Quando Francisca e Gerda pisaram pela primeira vez
em Brasília, aqui era só cerrado
"Pouco lembradas nos registros históricos, as
pioneiras tiveram função importante na epopeia que foi levantar uma cidade no
meio do nada. Conheça a trajetória de três dessas mulheres"
As mulheres que aqui chegaram, nos primeiros anos
de Brasília, eram corajosas, solidárias e atuantes. Por força da tradição e da
proporção numérica, porém, a narrativa da construção da cidade deu destaque
apenas aos homens que vieram para cá a partir de 1956. No entanto, elas
desempenharam funções tão fundamentais quanto os chamados desbravadores do
cerrado. De cozinheiras a educadoras, elas enfrentaram os desafios que a poeira
e o tempo seco imprimiram às primeiras gerações no Distrito Federal.
Quando Gerda Gumprich, 84 anos, recebeu a foto de
onde o marido, Edbert Pereira Leite, morava, na Nova Capital, ela achou que se
tratava de uma brincadeira. “Parecia um galinheiro. Eu não acreditei, achei que
era uma piada dele comigo”, lembra. Eram os idos de 1956, e a alemã tinha se
mudado havia apenas quatro anos para o Brasil. Aqui, casou-se com Edbert, que
seria o primeiro funcionário do Banco do Brasil a se mudar para Brasília.
“Quando cheguei e vi que era aquilo mesmo: uma casa de tábuas, com frestas e um
banquinho que servia de mesa, eu chorei muito à noite. No outro dia, levantei e
disse para mim mesma: o jeito é arregaçar as mangas e ir à luta”, conta.
Quando a residência na 116 Sul ficou pronta, a
família se mudou para lá. “Nos primeiros tempos, a gente brincava de
pique-esconde, pega-ladrão no Eixão. Não tinha muito movimento, então a gente
brincava em segurança. Gostávamos também de atravessar até a W3 Sul para irmos
à Campineira, comprar tijolo de sorvete”, recorda a servidora pública
aposentada Carla Pereira Leite, 57 anos. Filha de dona Gerda, ela e os outros
dois irmãos tinham toda a cidade à disposição. “A gente era bem livre,
brincávamos muito.” Quando compara a capital daquele tempo com a de agora, o
sentimento é de alegria. “Brasília cresceu muito. Está enorme!”, diz. Os
desafios iniciais se seguiram a uma vida estabelecida. “Valeu a pena. Estamos
aqui até hoje!”, ri a pioneira Gerda.
O poder de perto
Quando Francisca da Silva, 68 anos, se mudou para
Brasília, ela só tinha 5 anos. Ela veio com a mãe, dona Dolores, cozinheira do
presidente Juscelino Kubitschek. “Eu era a única criança do Catetinho. Era
muito paparicada”, recorda-se. Quando JK e colegas de empreitada vinham para
Brasília, faziam questão de trazer um brinquedo para a pequena Francisca.
“Também sempre brincavam comigo.” Daqueles tempos, ela se lembra de morar na
Rua do Sossego, na Candangolândia. “Ver a cidade como está hoje é emocionante,
porque minha mãe e eu fazemos parte dessa história”, afirma. Para ela, todas as
dificuldades foram apenas um caminho a ser vencido. “Sou muito feliz por ter
presenciado tudo isso”, afirma.
Maria Coeli, 73 anos, chegou adolescente à capital,
no ano da inauguração: a pioneira produziu dois documentários
Não foi fácil para Maria Coeli de Almeida
Vasconcelos, 73 anos, se adaptar ao Planalto Central. Aos 17 anos, ela se mudou
de Minas Gerais para o Planalto Central. “Cheguei em 1960, estava cursando o
normal”, lembra. O pai, então deputado federal, era amigo bastante próximo de
JK e quis incentivar o projeto do então presidente. “Ninguém queria vir para
cá, porque não tinha nada”, explica. Foi em uma aula de ciências, na Escola
Classe 206 Sul, que passei a pensar diferente. A professora contou que as
árvores do cerrado eram grossas para se proteger do tempo seco. Vi que deveria
me adaptar, como as árvores”, conta Maria Coeli.
Os primeiros anos, em Brasília, deram a ela a
condição de desenvolver uma educação plena. “Eu estudava no Colégio Aplicação e
colocava em sala de aula o que aprendia no curso normal. Foi uma experiência
maravilhosa.” A vida profissional se diversificou. “Comecei o curso de
arquitetura e urbanismo na UnB, mas não terminei. Também sou atriz e realizei
dois documentários: Honestino 30 anos e Ataíde: sua obra, seu tempo.”
Para saber mais - Riqueza histórica
Para saber mais - Riqueza histórica
Registrar e tornar conhecida a construção de
Brasília a partir da narrativa feminina é fundamental para a preservação da
história local. A economista e documentarista Tânia Fontenele se dedica a
remontar a vivência das pioneiras, por meio do documentário Poeira&Batom no
Planalto Central e da exposição Memórias Femininas na Construção de Brasília.
“Até então, só se falava dos homens na construção, mas as mulheres foram
fundamentais. Por isso, comecei o estudo sobre as memórias femininas nesse
processo”, conta.
A pesquisa trouxe resultados históricos e pessoais. “As mulheres que entrevistei para o projeto se tornaram minhas amigas”, explica. Para Tânia, é preciso se dedicar ao resgate dessas memórias antes que seja tarde. “O Poeira&Batom, por exemplo, é um documento cada vez mais raro, porque as pioneiras estão morrendo. A gente precisa fazer a documentação imediata, pois estamos perdendo a memória oral feminina”, destaca. A Mostra de Cinema Feminino de Brasília, que ocorre até hoje, é um dos espaços para divulgação da história das primeiras mulheres na cidade.
Fonte:
Maryna Lacerda – Fotos: Ana Rayssa/Esp.CB/D.A.Press – Correio Braziliense