Domingo, a bela e árida Praça dos Três Poderes
amanheceu como a maioria das praças cívicas espalhadas pelo país afora: deserta
e esquecida pela população. Um bando de pombos e alguns poucos turistas
perdidos naquele vazio eram as únicas testemunhas à volta dos palácios
fantasmas. Um homem magricelo e alto, de barba e cabelos longos, aparentando
pouco mais de 50 anos e que, segundo alguns, havia dormido nos últimos três
dias nos gramados daquela região, parou bem em frente ao Palácio do Planalto,
de onde passou a gesticular e a pronunciar em alto som palavras sem sentido.
Para o pessoal da segurança e alguns passantes, a
cena foi vista como mais uma manifestação contra ou a favor do governo. Nestes
tempos de crise, com a praça cortada por extensos gradis e alambrados
metálicos, as manifestações em grupos ou isoladas passaram a compor o cotidiano
do local. Todos os dias, há alguém por lá bradando agitado. Contudo, naquela
manhã tranquila, o que parecia manifestação isolada e costumeira ganhou
contornos de tragédia humana.
Em meio à gritaria e agitação de braços o
desconhecido embebeu-se com gasolina e ateou fogo ao próprio corpo, e passou a
arder como tocha viva. Ao imolar-se diante do palácio rumoroso, por motivo
ainda não sabido, o estranho personagem, por razões que fogem ao seu próprio
ato, ergueu e lançou sobre toda a nação o que pode ser a maior metáfora que
busca entender estes tempos sombrios.
O gesto dramático nos remete ao estopim que detonou a chamada Primavera
Árabe. Naquela ocasião, o jovem tunisiano Mohamed Bouazizi ateou fogo ao
próprio corpo para protestar contra a opressão em seu país. Guardadas as
devidas proporções, o ato de se imolar diante do altar do poder resume sempre
um desejo incontido de expressar vontade íntima e sobre-humana.
O drama desse brasileiro anônimo pode ter passado despercebido pela mídia
geral, que se dignou a esclarecer o episódio com notas curtas, mas em seu
simbolismo, expressa muito mais do que o estado de ânimo da população.
Tresloucado, o gesto desse personagem diz muito mais ao Palácio do Planalto e
ao atual governo do que ao próprio infeliz que ardeu em chamas. Para os
historiadores do futuro, o ato inflamado poderá ser interpretado como o epílogo
de uma longa década louca em que todo um homem mostrou que o país ardeu em
praça pública.
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A frase que foi pronunciada
“O governo está comprando votos de
parlamentares com cargos e verba pública. Isso é inaceitável. O nome
disso é fisiologismo”
(Senador Reguffe, furioso em discurso no plenário do
Senado)
Por: Circe Cunha – Coluna ”Visto,
lido e ouvido” – Ari Cunha – Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog -
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