Por: Severino Francisco
A maneira de olhar muda tudo. Uma boa
parte dos jornalistas forasteiros chega a Brasília com ideias prontas e frases
feitas. Na contracorrente, Vinicius de Moraes, João Cabral de Melo Neto, Carlos
Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Nelson Rodrigues, Caetano Veloso e Paulo
Mendes Campos se relacionaram intensamente com a cidade, sem teorias ou teses
fechadas. Por isso, lançaram miradas reveladoras sobre Brasília.
O cronista mineiro Paulo Mendes Campos
também marcou e deixou-se marcar por Brasília. Ele tinha muitos amigos por aqui
e escreveu uma bela crônica intitulada Os seis sentidos em Brasília. Onde
muitos convencionais ou apressados só viram defeitos, ele vislumbrou
qualidades: “É boa para os olhos. Nas outras cidades grandes, onde não devia
haver nada, há um monturo de edificações: em Brasília, onde não deve haver
nada, não há nada. Descansa os olhos. Possui as riquezas elementares que foram
mutiladas em outras cidades: céu cor de céu, vegetal verdade, água
tranquilizante. Até os cegos podem ver Brasília pela vibração sutil e
confortante dos espaços abertos”.
Mas Brasília, segundo Paulinho, é
também boa para os ouvidos, e reclamar do barulho de certas superquadras é um
luxo. Os ruídos do trânsito perdem a agressividade ao se diluírem nos
descampados do planalto: “Mas é natural que o brasiliense reclame do ruído,
onde este só aparece para dizer que existe; os habitantes do Rio, de São Paulo
e de Belo Horizonte, se quiserem manter a mesma coerência, deverão reclamar do
silêncio, caso este dê o ar de sua graça”.
Brasília seria boa ao nariz. Não agride
o olfato de ninguém. E também é excelente para o paladar, pois existe uma
conexão íntima entre o tempo disponível e a imaginação na cozinha. Além disso,
a nova capital não nos constrange pelo tato: “A transpiração não nos escorre
pelo pescoço”.
O sexto sentido de Brasília seria o
calor humano e, neste item, PMC discorda da afirmação de que a cidade seria tão
gélida quanto a Antártida. Ele fez uma pesquisa informal e não chegou a nenhuma
conclusão sobre “a instável, contrastante e relativa escala térmica das
relações humanas”.
Se Paulo Mendes Campos estivesse vivo e
nos visitasse, veria que muitas coisas mudaram. Graças ao tombamento como
Patrimônio Cultural da Humanidade e à luta de moradores mobilizados, Brasília
continua plasticamente bela, cidade espacial, com o céu escancarado nos
convidando a grandes voos. O odor já não é impecável, principalmente nas
quadras finais das asas Norte e Sul (próximo das estações de tratamento da
Caesb), detrás do Senado ou em frente ao bairro Jardim Botânico.
É possível comer bem nos restaurantes,
desde que você possa pagar em surreais, a moeda cada vez mais imperante na
capital. Apesar dos descampados diluidores de ruídos, os carros se trombam
agressivamente nas largas avenidas. Brasília precisa encarar enormes desafios
para preservar a sua identidade e se desenvolver. Mas, de qualquer maneira, é
prazeroso e instrutivo reler PMC. Ele nos ensina a arte de ver uma cidade com
olhos livres. É bom para os olhos e para o espírito. Descansa.
(*) Severino Francisco – Colunista – Correio
Braziliense – Foto: Bento Viana