Em 1956, depois do
discurso de Nikita Krushev, milhares de militantes comunistas se negaram a
acreditar nos crimes e erros que Josef Stalin cometeu à frente da União
Soviética. Muitos comunistas sobreviveram e morreram insistindo que tudo não
passava de uma farsa do grupo que tinha tomado o poder. Stalin continuou sendo
uma referência para eles.
Sessenta anos depois, milhares de brasileiros estão passando
por situação parecida ao perceberem erros e crimes cometidos pelos partidos de
esquerda no poder, especialmente depois de 2003. Embora os erros e falhas
éticas de nossos partidos nada tenham a ver com as brutalidades genocidas do
regime soviético, é surpreendente ver militantes, intelectuais, cientistas,
filósofos dizendo que juízes e procuradores da Lava Jato, que prendem políticos
e empresários corruptos, são agentes infiltrados da CIA e do FBI, treinados
para desfazer os partidos de esquerda na América Latina.
Negam que houve corrupção nas estatais, como resultado de um
criminoso aparelhamento da máquina do governo, que as alianças espúrias feitas
para manter o poder não depredaram a consciência política de nossos eleitores,
ou insistem que os governos de esquerda foram levados à corrupção por uma
conspiração internacional.
Percebe-se
a mesma cegueira que permitiu acreditar nas narrativas criadas pelo marketing:
de que o Pré-sal salvaria o Brasil; de que trinta milhões de brasileiros haviam
ascendido à classe média; de que os filhos dos pobres disputam a entrada na
universidade pública com igualdade de condições com os filhos dos ricos; e que
a Copa do Mundo provocaria 3% de crescimento no Produto Interno Bruto (PIB) e
as olimpíadas, um pouco menos.
Nada disso se verificou, mas, além de continuar acreditando,
negam-se a admitir o saque à Petrobras e à Eletrobrás; negam a corrupção
generalizada e os efeitos do aparelhamento do Estado. As mentiras na campanha
de 2014; a falência dos fundos de pensão; a falência das finanças e dos
serviços públicos. De tanto viciar-se nas narrativas oficiais, pode-se dizer
que há um medo da verdade e, portanto, uma recusa a pensar.
Apesar de um recente aumento no interesse pela política,
houve um retrocesso no nível de consciência política no Brasil: os debates são
feitos como entre torcidas esportivas. Surgiu uma cegueira que impede ver o
desastre provocado pela irresponsabilidade fiscal, com propósito eleitoral,
apesar de tantos alertas feitos ao longo dos últimos anos. O medo da verdade, a
aceitação das narrativas, tem empobrecido o debate político brasileiro.
Recentemente, fui abordado por uma senhora que me perguntou:
“O senhor é o senador Cristovam?”. Sorrindo, disse que sim e estendi-lhe a mão.
Ela não moveu o braço e ainda disse que não apertava a mão de golpista.
Perguntei-lhe como sabia o voto que darei, se tenho me mantido firme na posição
de juiz, que só informa sua sentença depois de ouvir e analisar todos os
procedimentos de defesa e acusação. Ela respondeu de pronto: “Quem ainda está
pensando é golpista.”
Ao
contar isso entre amigos, defensores ou não do impeachment, descobri
que a posição daquela senhora é aceita por muitos, dos dois lados. Para a
maioria, pensar sobre a correção ou não do impeachment para o futuro
do país é uma posição vacilante: para um lado, de “golpista”, para o outro, de
petista. Estes não admitem que se justifique analisar crime que determinam não
ter ocorrido, os outros não admitem que se ignore os crimes que para eles
ocorreram.
Todos estão com medo da verdade. Muitos parlamentares do PT
sabem que a volta da presidente Dilma, sem base no Congresso Nacional, com o
descrédito de seu governo, com as dificuldades de recompor um Ministério,
deixará o Brasil, especialmente nossa economia, em condições muito frágeis.
Do outro lado, os que fazem oposição ao PT e ao conjunto da
população, admitem que a derrubada da presidente, no meio de seu mandato,
apesar de todos os erros, sem clareza de crime, macula o futuro da democracia
presidencialista, trazendo instabilidade futura.
Mas, no lugar de
debater na busca do que será melhor para o Brasil, estamos desprezando a
verdade, desprezando a história, fugindo do pensamento, preferindo acreditar
nas opções doutrinárias.
(*) Cristovam Buarque – é senador pelo PPS-DF –
Professor emérito da UNB