Nas últimas semanas, o presidente da Turquia, Recep
Tayyip Erdogan, suspendeu 15,2 mil professores e funcionários do Ministério da
Educação, revogou licenças de mais de 20 mil professores de escolas
particulares, demitiu 2,7 mil juízes e promotores, fechou cerca de mil
instituições de ensino, suspendeu 8,7 mil oficiais, obrigou 7,9 mil policiais a
entregar suas identidades e prendeu 10,9 mil oficiais e soldados. Tudo isto
feito em nome de se opor a uma tentativa de golpe que parece uma narrativa
operística.
Por falta de um general para apresentar como o
comandante golpista, Erdogan responsabilizou um filósofo religioso, de 75 anos
de idade, doente, morador dos EUA desde 1999, de nome Fethullah Gülen, que
teria insuflado contra o governo os voluntários do Hizmet, movimento social
inspirado por ele, décadas atrás.
Gülen defende um Islã democrático, aberto ao
diálogo com outras religiões; aliado ao presidente Erdogan, afastou-se ao
perceber o grau de corrupção que rodeava o governo, passando então a ser
perseguido. O movimento Hizmet, iniciado pelo jovem Gülen, define a prestação
de serviço à comunidade como o eixo central do Islã: “Servir às pessoas para
servir a Deus”, é a frase que ele usa.
O Hizmet não tem organização formal, hierarquia ou
organograma e se materializa sob a forma de movimento de pessoas independentes,
que se unem pela mística da prestação de serviços à comunidade.
Até semanas atrás, em Istambul, havia uma “sala de
situação” mantida por simpatizantes do Hizmet para acompanhar catástrofes no
mundo inteiro, maremotos, terremotos, epidemias, contando, no subsolo, com
equipamentos necessários e apropriados para atender às vítimas, onde ocorre a
tragédia.
Graças ao “sentimento Hizmet”, a Turquia dispõe de
dezenas de universidades criadas com doações feitas por empresários; centenas
de escolas espalhadas por diversos países. Na fronteira entre Turquia e Síria,
a poucos quilômetros de Aleppo, visitei um acampamento que recebe milhares de
fugitivos da guerra, atendidos por voluntários do Hizmet, oferecendo-lhes
comida, habitação e proteção.
Hoje, todos estes serviços estão fechados. O
presidente Erdogan vinha reprimindo em pequenas doses estas ações, desde quando
o líder intelectual e religioso Gülen se afastou de seu governo, e os jornais,
cujos donos são simpatizantes da filosofia Hizmet, denunciaram corrupção por
parte de pessoas do governo e de familiares do presidente.
Foi preciso usar a narrativa de tentativa de golpe,
para dar o golpe em grande escala contra seus opositores, especialmente aqueles
que têm relações com o sentimento-movimento Hizmet e seu inspirador espiritual
e intelectual. Prática usada por Hitler ao se aproveitar do incêndio do
Parlamento alemão em 1933.
Esperemos que a ideia de criar uma narrativa de
tentativa de golpe se limite à Turquia, tanto no que se refere à repressão
política, quanto à intolerância contra dissidentes de opiniões oficiais.
(*) Cristovam Buarque,
professor emérito da UNB - Senador pelo PPS-DF