Graças à atuação ágil do ministro do Supremo
Tribunal Federal, Luiz Fux, o Projeto de Lei de Iniciativa popular (PL nº
4.850/16), que trata das 10 medidas de combate à corrupção e que recebeu
2.028.263 assinaturas de apoio, foi salvo da completa mutilação pelos
congressistas, temerosos de que seus efeitos imediatos recaíssem sobre suas
próprias cabeças com uma autêntica espada de Dâmocles.
É dito que, no mundo do direito, o parecer jurídico, cuja finalidade é
elucidar e sugerir providências legais, vai muito além de um simples ato
opinativo, configurando-se, em alguns casos, em verdadeiros tratados de
jurisprudência. No caso da concessão da liminar dada pelo ministro Fux, zerando
a tramitação, no Congresso, do projeto das 10 medidas contra a corrupção, o que
se tem em seu parecer é uma verdadeira aula de direito, que, mesmo aqueles que
falam em judicialização da política e intervenção indevida de um poder sobre
outro tiveram que calar e engolir a seco.
O pinçamento de algumas considerações feitas em seu parecer dá uma
dimensão aproximada do quão distante ainda se encontra o desejo popular da
representação política, moldada apenas em consonância com os ditames dos
respectivos partidos políticos.
A desfiguração do projeto original perpetrada pelo parlamento e feita na
calada da noite gerou um clima de consternação e desânimo na
populaçãoconvencida de que, a depender dos componentes do Legislativo atual,
nenhuma reforma que venha, de fato, moralizar o Estado sairá daquelas duas
Casas.
Foi necessário que o ministro Fux lembrasse às suas excelências que a
iniciativa popular de leis é, ao lado do voto, do plebiscito e do referendo,
forma de exercício da soberania do povo no regime democrático brasileiro (art.
14, III, da Constituição), assegurando-se, por esse mecanismo, participação
direta dos cidadãos na vida política da República.
Em outro trecho de seu despacho, Fux ressalta que apropriação de um
projeto de iniciativa popular, por parte de um parlamentar, amesquinha a
magnitude democrática e constitucional da iniciativa popular, subjugando um
exercício por excelência da soberania pelos seus titulares aos meandros
legislativos nem sempre permeáveis às vozes das ruas. Para o ministro, é
preciso que projeto dessa natureza seja debatido na sua essência,
interditando-se emendas e substitutivos que desfigurem a proposta original para
simular apoio público a um texto essencialmente distinto do subscrito por
milhões de eleitores. Em seu parecer, Fux lamentou ainda que, mesmo antes de
ser submetido a qualquer reflexão aprofundada na Casa legislativa, a proposta
tenha sido extirpada em seu nascedouro... não sendo, sequer, apreciada e
rejeitada a formulação popular.
No entendimento do ministro, o que ocorreu foi uma
evidente sobreposição do anseio popular pelos interesses parlamentares
ordinários, o que, em sua opinião, acaba por vedar à sociedade uma porta de
entrada eficaz, no Congresso Nacional, para que seus interesses sejam
apreciados e discutidos. Luiz Fux argumenta que a mutilação do projeto original
deixou à mostra a existência de um simulacro de participação popular quando as
assinaturas de parcela significativa do eleitorado nacional são substituídas
pela de alguns parlamentares, bem assim quando o texto gestado no consciente
popular é emendado com matéria estranha ou fulminado antes mesmo de ser
debatido.
No que pôde inferir da tramitação do projeto no
Congresso, o que houve foi um atropelo feito pelas propostas mais interessantes
à classe política detentora das cadeiras no parlamento nacional. O que, em
outras palavras, pode ser traduzido como reformulação do projeto para atender
às necessidades políticas do momento, principalmente aquelas que dizem respeito
à autoproteção e à blindagem de muitos parlamentares que foram e que virão a ser
denunciados.
O ministro Fux faz questão de destacar ainda, em seu parecer, que
afronta existe nos casos de distorção da matéria versada em proposta de
iniciativa popular. O ministro deixou claro ainda que a visão atávica que
qualifica as discussões sobre transgressões a normas regimentais como questões
interna corporis, imunes ao controle judicial é imprópria dentro de um Estado
Democrático de Direito, o que, na sua concepção, nada mais é do que um
resquício da concepção ortodoxa do princípio da separação de poderes, que, de
certa forma, ainda visualiza a existência de domínios infensos à intervenção
judicial, reservados que seriam à instituição parlamentar, responsável pela
solução final de toda e qualquer matéria emergente no seu interior.
Para os que defendem a tese da separação total dos Poderes e que
decisões interna corporis são perfeitas em si mesmas, Fux acrescenta que, em um
Estado Democrático de Direito, como o é a República Federativa do Brasil (CF,
art. 1 º, caput), é paradoxal conceber a existência de campos que estejam
blindados contra a revisão jurisdicional, adstritos tão somente à alçada
exclusiva do respectivo Poder. Dessa forma, o ministro do STF acredita que,
nesse caso, o insulamento do processo legislativo compromete o adequado funcionamento
das instituições democráticas. O que houve, em sua opinião, com a desfiguração
do projeto, foi uma desnaturação da essência da proposta popular destinada ao
combate à corrupção, acrescida de uma preocupante atuação parlamentar contrária
a esse desiderato.
Feitas essas considerações, o ministro decidiu suspender a tramitação do
PL, determinando seu retorno a Comissão Geral na Câmara dos Deputados para que
obedeça ao regime de tramitação própria, conforme estabelece o Artigo 252 da
própria Câmara. O Ministério Público aplaudiu. A própria presidente do STF, em
seu silêncio mineiro, aquiesceu. E todos os que querem um Brasil
definitivamente, livre da corrupção, assinaram em baixo.
Caso venha a ser confirmada pelo Plenário do STF no próximo ano, estarão,
finalmente, abertas as portas da República para o acolhimento da população e
para a efetivação do parágrafo único da Constituição que diz: Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio
de seus representantes eleitos ou diretamente nos termos desta Constituição.
Por Circe Cunha – Coluna “Visto, lido e ouvido” –
Ari Cunha – Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog - Google