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Organizações criminosas e falência penitenciária

Morta em 1893, Concepción Arenal nos legou artigos importantes e atuais sobre penitenciarismo, reivindicações das mulheres, menores abandonados, direitos dos operários etc. A galega Arenal viveu em um século agitado e problemático para a Espanha, marcado pela ocupação francesa, a instauração da monarquia por José Bonaparte, o retorno pós-abdicação do rei Ferdinando VII, as Guerras Carlistas a envolver o absolutista Carlos María de Borbon e a liberal Isabel II, a revolução de 1868 e a Primeira República.

Diante das recentes tragédias brasileiras ocorridas nas penitenciárias de Manaus e Boa Vista, cabe recuperar e refletir a respeito de dois ensinamentos de Concepción Arenal, em especial diante das normas contidas na nossa Constituição republicana. Para Arenal, “não existem presos incorrigíveis, mas incorrigidos”, e ela considerava os presídios como “enfermarias” para tratamento da alma e da mente, tudo para se poder alcançar a emenda do condenado. Algo, aliás, na linha do cristianismo, que entende, pela sua doutrina da metanoia, ter a pena de prisão a função ética de emenda do condenado.

A nossa Constituição proíbe a pena de prisão perpétua e estabelece em 30 anos o prazo máximo para cumprimento da pena. No Brasil, além do componente punitivo-retributivo, claro está ter a pena a função ética de emenda. Apesar disso, temos no país um sistema penitenciário que não busca a ressocialização do sentenciado e colhe, como consequência, 80% de retorno ao crime. Os presídios, como se constata pelo alto percentual de recidiva, se retroalimentam. Diante desse quadro, o egresso do sistema pelo cumprimento da pena ou pela sua colocação em regime aberto não consegue emprego. Por outro lado, os membros das organizações criminosas, em liberdade, são logo reaproveitados.

Nos presídios fechados grassa a entropia, e as organizações criminosas de características pré-mafiosas — como Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Família do Norte (FDN) —, por terem controle social e de território, dominam internamente os estabelecimentos e mantêm comunicação com o exterior. Não raro, essas associações delinquenciais realizam simbólicas cerimônias de iniciação de presos cooptados, a seguir os exemplos do que é feito — antes da reforma do Código Penitenciário italiano com retomada pelo Estado do controle disciplinar imposto pela introdução e efetivação do artigo 46 bis — pela Cosa Nostra siciliana no megapresídio Ucciardone de Palermo e pela Sacra Corona Unità, potente organização criminosa que, como o PCC, nasceu dentro de presídio da região da Puglia.

As mencionadas associações delinquenciais brasileiras têm formato verticalizado e os seus órgãos de governo, as cúpulas de mando, estão dentro dos presídios. Com fácil comunicação com o exterior, as ordens são repassadas, os lucros criminosos garantidos e o poder corruptor de agentes penitenciários aumentado. Antes de se anunciar um Plano Nacional de Segurança Pública, o governo Temer deveria colocar o sistema penitenciário em regime de UTI hospitalar. Em outras palavras, partir para a execução de medidas urgentes, a começar, como fez a Itália com sucesso no combate às máfias, pela retomada do controle disciplinar dos espaços territoriais internos. Colocada a questão da criminalidade organizada e dos presídios como de segurança nacional, chamaria para si a responsabilidade por soluções que os estados federados não conseguem resolver.

O anunciado Plano Nacional de Segurança, da maneira posta, mostra o governo a querer, usando uma imagem, consertar fratura exposta com a colocação de alguns esparadrapos. Por isso, esse Plano Nacional, — que praticamente repete os anunciados nos governos FHC, Lula e Dilma, não empolga o cidadão comum e, no popular, não engana mais ninguém. O momento é de estabelecer emergências e, em paralelo, promover uma ampla reforma no âmbito da política criminal, considerada, pela doutrina europeia, como sendo a ciência e a arte de escolha de meios adequados preventivos, repressivos, de execução penal e de direito penitenciário, que o Estado nacional, por meio dos seus poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, carece obter para contrastar e dar resposta ao fenômeno criminal e garantir a tranquilidade pública.

Não se deve olvidar ser a privatização dos presídios uma medida flagrantemente inconstitucional. É indelegável a execução penal, que no Brasil é jurisdicionalizada e compete ao Judiciário. A atividade administrativa de expiação da pena é que está afetando com exclusividade o Executivo. Pode-se, assim, pensar apenas em terceirização de alguns serviços penitenciários, como, por exemplo, o fornecimento de refeições, atividades de hotelaria como lavagem de uniformes ou o auxílio a agentes penitenciários no trato com os visitantes de presos em regime fechado. É indelegável pelo Executivo a imposição de sanções disciplinares ao preso ou deixar para o chamado “terceiro setor” a idealização, implantação e controle de programas de ressocialização. Num pano rápido, o sistema prisional está falido e, mantido como está, só uma pax mafiosa entre organizações criminosas rivais e em busca de hegemonia é que poderá evitar novas tragédias e desumanidades.




Por Wálter Fanganiello Maierovitch - Desembargador aposentado, professor de direito, comentarista da rádio CBN, colunista da revista Carta Capital, conferencista e primeiro vice-presidente do Ciee – Fonte: Correio Braziliense – Foto/Ilustração: Blog - Google

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