Diversos documentos foram apreendidos pela Polícia
Civil no Hospital de Base e em outros três endereços: graves acusações
Um total de 16 servidores do Hospital de Base foram
levados coercitivamente para prestar depoimento sobre adulteração no ponto,
faltas injustificadas e outras possíveis condutas ilegais. Polícia Civil e
Ministério Público do DF analisam o caso
*Por Isa Stacciarini - Deborah Fortuna - Carolina Gama,
A denúncia de uma médica da Unidade de
Terapia Intensiva (UTI) do Hospital de Base do Distrito Federal (HBDF)
desencadeou uma investigação sobre fraude na folha de ponto de servidores da
unidade de saúde. As suspeitas recaem na atitude de médicos que registraram
horas extras em quantidade elevadas, efetuaram pagamentos para escaparem de
plantões, conseguiram abono para faltas injustificadas e possuíam o mesmo
horário de trabalho em outro emprego (veja Casos apurados). Os crimes entraram
na mira do Ministério Público do DF e dos Territórios (MPDFT) e da Polícia
Civil como prática de peculato, uso de documento falso, falsidade ideológica,
estelionato, possível associação criminosa e alteração de dados no sistema de
informação.
Deflagrada na manhã de ontem, a
operação Higia, nome dado em referência a uma deusa da mitologia grega que
buscava a prevenção de doenças, cumpriu 16 conduções coercitivas — 13 médicos e
três servidores administrativos. Promotores e agentes da Delegacia de Combate
aos Crimes contra a Administração Pública (Decap) também recolheram documentos
em quatro endereços, entre eles o Hospital de Base, a Fundação de Ensino e
Pesquisa em Ciências da Saúde (Fepecs) e a casa da ex-chefe da UTI da
unidade de saúde.
Na avaliação de promotores e do delegado
responsável pelo caso, essa é só uma ponta de inúmeras ilegalidades. A partir
da análise do material apreendido, novas operações podem surgir. “Vamos
aprimorar para garantir a permanência e a salubridade do serviço de saúde para
o atendimento do cidadão. Outras operações, com certeza, serão aprimoradas para
coibir esse tipo de conduta”, destacou o promotor de Defesa da Saúde (Prosus)
do MPDFT, Luis Henrique Ishihara. “Só pelas horas extras, eles recebiam R$ 15
mil, além do salário.”
Em determinados casos, alguns dos
médicos nem sequer conferiam a lista de escalas para compatibilizá-las, o que,
para o promotor, revela a certeza que os profissionais tinham da impunidade.
“Não havia preocupação nenhuma. Um dos médicos do HBDF, que também tinha outra
matrícula vinculada à Fepecs, estava com o mesmo horário de expediente nos dois
lugares. Ou ele estava em apenas um dos locais ou, quiçá, em nenhum deles”,
lamentou. “Há queixa de que não há médicos na rede pública. Se essa conduta
permanecer, nunca haverá. A quantidade nunca será suficiente para atender à
demanda do DF”, acrescentou Ishihara.
Ilegalidades
As investigações são relativas ao
período entre 2013 e 2016, mas a intenção é que seja ampliada até 2017. A época
é justamente a mesma em que a ex-chefe da UTI ficou no cargo. Vânia Maria de
Oliveira é uma das principais investigadas, mas optou por ficar em silêncio no
depoimento na delegacia. Ela também não falou com a imprensa. Além de servidora
efetiva, ela ocupava função comissionada de chefia, tinha contrato temporário
de 20 horas semanais como intensivista da UTI e atuava em mais dois locais
privados. “Em 2015, ela tentou renovar o contrato temporário dela e da equipe,
mesmo com médicos aprovados em concurso público esperando ser convocados, sob
alegação de que o grupo era o único com capacidade técnica para ocupar a
função”, contou o promotor.
Outro alvo da investigação é o
ex-diretor do hospital Julival Ribeiro. Ao contrário de Vânia, ele tentou
justificar, em depoimento à polícia, que os profissionais cumpriram todas as
horas extras cadastradas. À imprensa, alegou que tinha mais de 4 mil
funcionários e cada unidade tinha uma chefia. “Quem fica respondendo legalmente
pelo controle das escalas é o chefe de cada setor. Não tem como o diretor do
hospital fazer o controle com mais de 4 mil servidores. Se soubesse e tivesse,
à época, alguma coisa errada, tinha tomado todas as providências, como sempre
fiz”, explicou.
As irregularidades na saúde se juntaram
a outras investigações da Polícia Civil e do MPDFT. Em dezembro, houve duas
operações contra a farra de atestados médicos (leia Memória) e, desde outubro,
a Decap investiga o sumiço dos dados no sistema de ponto da Secretaria de
Saúde. Segundo o promotor de Defesa dos Usuários da Saúde (Pró-Vida), Maurício
Miranda, os trabalhos de investigação têm surtido efeito psicológico positivo
nos servidores. “Houve, de forma geral, redução de 8% nas abstenções dentro da
Secretaria de Saúde. Esperamos que, a cada operação, o retorno médico venha a aumentar”,
ressaltou.
Segundo o corregedor da Secretaria de
Saúde, Fábio Henrique dos Santos, todos os profissionais investigados devem
passar por um processo administrativo, mas ainda não há previsão de afastamento
dos servidores. “O que podemos dizer é que, agora, as investigações vão passar
para outros servidores em outros hospitais, e não apenas no Hospital de Base”,
afirmou. O afastamento dos servidores só será solicitado, segundo Fábio, quando
a secretaria for notificada oficialmente. Ele explicou que, até lá, podem haver
mudanças na lista de investigados.
Sumiço
Em outubro, a Delegacia de Repressão
aos Crimes Contra Administração Pública (Decap) apurou o envolvimento de
servidores da Secretaria de Saúde no sumiço de dados do Sistema Forponto. A plataforma
registra a presença dos servidores, contabiliza as horas trabalhadas, mede as
horas extras, entre outras informações. A suspeita é de que o histórico da
plataforma possa ter sido apagado por uma retaliação de servidores que passaram
a ter as faltas injustificadas descontadas da folha de pagamento. Dados da
folha de ponto de cerca de 33 mil funcionários da pasta foram deletados e
recuperados
por backup.
Memória - Contra a farra dos
atestados
Em dezembro, o MPDFT e a Polícia Civil
deflagraram duas etapas da Operação Trackcare, que apura fraudes em atestados e
receitas médicas da Secretaria de Saúde. A primeira fase, em 8 de dezembro,
cumpriu mandados de busca e apreensão no Cruzeiro, no Sudoeste e no Centro de
Saúde nº 3 do Guará. Um técnico de enfermagem, que apresentou 16 atestados e
teve 47 abonos duvidosos na folha de ponto, e uma enfermeira, que homologou 18
licenças e teve 18 incidências estranhas (como 402 horas extras em cinco
meses), tiveram de prestar depoimento coercitivamente na Delegacia de Combate
aos Crimes contra a Administração Pública (Decap).
As suspeitas recaíam sobre atestados
fraudulentos e distribuição de medicamento com uso de receitas falsas, além de
adulteração de dados. As investigações apontam, inclusive, que políticos se
beneficiaram nas eleições de 2014 com a distribuição de remédios obtidos de
forma fraudulenta. Entre junho de 2015 e setembro de 2016, 2.578 dos 4,8 mil
médicos da rede pública pediram afastamento do trabalho.
Onze dias depois, houve a segunda etapa
da operação, que levantou suspeitas de um médico que poderia ter sido
beneficiado no esquema nas eleições de 2014, quando disputou uma vaga na Câmara
Legislativa do DF. Ele teria distribuído remédios, sem receita, para comprar o
voto de possíveis eleitores. Policiais civis e promotores cumpriram mandados de
busca e apreensão em três endereços. No Centro de Saúde nº 1 de São Sebastião
identificaram destruição de provas.
Casos apurados
» Em nove meses, uma médica infectologista
da UTI do HBDF teve 56 incidências de trabalhos externos. A norma interna exige
uma anotação em boletim, que nunca existiu.
» Um médico da mesma unidade tinha uma
segunda matrícula vinculada à Fepecs, da Escola Superior de Ciências da Saúde,
e o mesmo horário de trabalho nos dois lugares.
» Um médico fez 36 horas seguidas de
plantão, durante quatro fins de semana do mês, além das horas a mais nos dias
de expediente.
» Um médico recebeu R$ 15 mil apenas
pelas 135 horas extras que fez no mês, sem contar o salário e os demais
vínculos que tinha com outras entidades privadas e clínicas.
(*) Isa Stacciarini - Deborah Fortuna
- Especial para o CorreioBraziliense - Colaborou: Carolina Gama-
Foto: Breno Fortes/CB/D.A.Press