*Por Silvestre Gorgulho,
A construção de Brasília saiu do
papel em 16 de março de 1957, quando foi anunciado o projeto vencedor do Plano
Piloto. A data marcou a contagem regressiva para a inauguração, em 21 de abril
de 1960, por vários motivos. O principal deles está explicado na frase de Darcy
Ribeiro: “Deus estava de bom humor quando juntou no mesmo tempo e espaço quatro
brasileiros especiais: Juscelino Kubitschek, Oscar Niemeyer, Israel Pinheiro e
Lucio Costa”. A autoridade moral, o respeito profissional e firmeza política de
cada um deles transfiguraram na força que moveu as montanhas da burocracia e
plantou uma cidade-capital em apenas 1.112 dias.
Para tornar o sonho realidade, dois milagres aconteceram. Primeiro
milagre: houve um presidente da República que vislumbrou algo muito além do
simples cumprimento de uma determinação constitucional — a mudança da Capital
para o Planalto Central — e tomou uma atitude firme, bancando um ato de
implicações políticas, geográficas, econômicas e culturais jamais vistas. Sim,
no dizer de Josué Montello: “JK recolheu o desafio durante um comício numa
praça pública de Jataí-GO e fez desse desafio um compromisso para ser saldado
na plenitude da liberdade de um regime democrático”.
Segundo milagre: um gênio brasileiro inventou sozinho uma cidade.
Concebeu uma capital-monumento. Planejou uma nova forma de viver e um novo
jeito de conviver. Deus, muito brasileiro, deixou o arquiteto e urbanista Lucio
Costa forjar a história da mais bela obra de intervenção geopolítica do Brasil
moderno.
Em 16 de março de 1957, uma comissão julgadora, sob a presidência de
Israel Pinheiro, anunciou a vitória do projeto de Lucio Costa entre os 26
apresentados. A comissão era formada por seis técnicos. Três estrangeiros:
Willian Holford (inglês), André Sive (francês) e o norte-americano Stamos
Papadaki. E três brasileiros: Oscar Niemeyer (Novacap), Paulo Antunes Ribeiro
(IAB) e Luiz Hildebrando Horta Barbosa (Clube de Engenharia).
O projeto vencedor de Lucio Costa atendia os fundamentos do concurso.
Assim, o Brasil e o mundo conheciam, há 60 anos, a Memória descritiva do Plano
Piloto. Lucio Costa começava assim seu trabalho épico: “Desejo inicialmente
desculpar-me perante a direção da Companhia Urbanizadora e da comissão
julgadora do concurso pela apresentação do partido aqui sugerido para a nova
capital, e também justificar-me. Não pretendia competir e, na verdade, não
concorro — apenas me desvencilho de uma solução possível, que não foi
procurada, mas surgiu, por assim dizer, já pronta. Compareço, não como técnico
devidamente aparelhado, pois nem sequer disponho de escritório, mas como
simples maquisard do urbanismo, que não pretende prosseguir no desenvolvimento
da ideia apresentada senão eventualmente, na qualidade de mero consultor”.
O projeto do arquiteto e urbanista Lucio Costa, que derrotou outras 25
propostas perante um júri internacional, não era apenas o traçado de uma cidade
voltada para a administração pública. O Plano Piloto de Lucio expressou a
monumentalidade de um sítio culturalmente sagrado e a grandeza de uma vontade
nacional.
Em 16 de março de 1957, nasceu a cidade-parque que sugeria uma nova
concepção de vida, baseada no resgate de valores essenciais ao bem-estar
coletivo. Tanto é verdade que, 30 anos depois, em 7 de dezembro de 1987, sua
obra foi reconhecida como Patrimônio Cultural da Humanidade. Sim, a Unesco, que
sempre se preocupou em preservar para o presente monumentos do passado, a
partir de Brasília, ao contrário, passou a preservar para o futuro os
monumentos do presente. Essa é a história da preservação da cultura universal
que os brasileiros, especialmente os brasilienses, precisam se orgulhar.
Como homenagem e para celebração dessa data, bem que a geração Brasília
podia fazer da bacia do Paranoá o Centro Histórico da Capital da República. A
filha de Lucio Costa, guardiã de sua memória, explica que esta decisão
significa ter algum controle sobre o que se pretenda fazer nessa área,
justamente para preservar a paisagem do horizonte de Brasília, que é parte da
cidade. “É evitar que o avião fique preso dentro de uma paliçada de prédios de
20 e 30 andares. Não se trata de propor nenhum plano para a área. Precisa,
simplesmente, ter poder de fiscalização sobre o que der e vier, com direito de
veto”.
Neste 16 de março, vale lembrar o próprio doutor Lucio: “O importante ao
se pensar na preservação, no adensamento ou na expansão de Brasília é não
perder de vista a postura original. É estar-se imbuído de lucidez e
sensibilidade no trato dos problemas urbanos. É perceber que coisas maiores e
coisas menores têm importância análoga, considerada cada uma em sua escala.
Brasília é a expressão de um determinado conceito urbanístico, tem filiação
certa, não é uma cidade bastarda”.
(*) Silvestre Gorgulho
- Jornalista e ex-Secretário de Estado de Cultura de Brasília – Foto
Bento Viana - Ilustração: Blog Google – Correio Braziliense