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Os guardiões das florestas


*Por Severino Francisco

“Não vou pra Brasília/Nem eu nem minha família/Não vou, não vou/Eu não sou índio nem nada/Não tenho a orelha furada/Nem uso argola pendurada o nariz/Não uso tanga de pena/E a minha pele é morena/Do sol da praia/Onde nasci e me criei feliz”, cantava Billy Blanco no samba Não vou pra Brasília, nos tempos pioneiros da transferência da capital do país do Rio de Janeiro para o Planalto Central.

O detalhe irônico é que o autor da espirituosa canção não nasceu e se criou feliz nas praias de Copacabana, como diz a letra. Ele é natural de Belém, no Pará, estado onde a presença indígena é marcante na formação étnica da população. Mas em Não vou pra Brasília, ele parece renegar completamente as suas origens paraenses e mirar o interior do país e sua gente com um olhar de superioridade quase europeu.

Sim, desde o início, os índios estiveram em Brasília, mas não os caricaturais da canção de Billy Blanco. As estradas facilitaram o acesso deles à cidade. Brasília mudou radicalmente a relação geopolítica dos índios com o poder central. Antes de Brasília, a presença deles em uma capital era uma aparição tão fantástica quanto a chegada de extraterrestres. Na nova capital modernista, eles passaram a fazer parte do cotidiano da cidade, a se expressar com o próprio corpo e com a própria voz.

Na terça-feira, mais de 2 mil índios travaram uma verdadeira batalha campal em frente ao Congresso. Levaram bombas de gás lacrimogênio, balas de borracha e spray de pimenta; e revidaram com flechadas nos policiais. Como sempre em todas as guerras, sobrou para a parte mais fraca: as crianças, as mulheres e os velhos. Mas, apesar do cerco da polícia, eles foram bravos, conseguiram furar o bloqueio e atiraram 200 caixões pretos de papelão no gramado e no espelho d’água do Congresso.

O protesto dos índios têm um alvo certeiro: a proposta de emenda à Constituição que transfere do Executivo para o Legislativo o poder de decisão sobre a demarcação das terras indígenas. Ou seja: a vida de milhares de índios ficará nas mãos dos parlamentares corruptos que roubaram bilhões do erário, criam leis para autoanistiar os crimes e se vendem a quem pagar mais.

É uma questão de vida e de morte não apenas para os índios, mas também para nós. Os índios são os guardiões das florestas. Os cientistas têm alertado que a expansão da pecuária e das monoculturas de grãos afetaram o equilíbrio ambiental do cerrado e todo o ciclo da água. No entanto, os economistas só veem números. Falta água em Brasília, o rio São Francisco está secando, regiões do Nordeste se reduzem a desertos.

Aqueles caixões pretos simbolizam não apenas a morte dos índios, mas também o nosso suicídio. Os índios são os últimos guardiões das florestas; os índios somos nós, eles estão defendendo a nossa vida. Ouçamos a voz do poeta Reynaldo Jardim: “O que se odeia no índio/não é apenas o ocupado espaço./O que se odeia no índio/é o puro animal que nele habita,/é a sua cor em bronze arquitetada./A precisão com que a flecha voa/e abate a caça; o gesto largo/com que abraça o rio; o gosto de/afagar as penas e tecer o cocar;/O que se odeia no índio/é o andar sem ruído; a presteza/segura de cada movimento; a eugenia/nítida do corpo erguido/contra a luz do sol”.

E, na sequência, Reynaldo arremata: “O que se odeia no índio é o sol./A árvore se odeia no índio./O rio se odeia no índio./O corpo a corpo com a vida/se odeia no índio./O que se odeia no índio/é a permanência da infância”

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(*) Severino Francisco – Jornalista, colunista do Correio Braziliense – Foto.Instagram Hugo Meireles Heringer/Ilustração: Blog-Google

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