Em meio ao concreto, brotam jardins, praças e
hortas. E iniciativas individuais contagiam o coletivo. Como a de Ikuyo
Nakamura (de camisa verde), que começou um trabalho solitário em uma área
abandonada e hoje conta com a ajuda de uma legião de cuidadores
Humanizar os espaços urbanos é um desafio do mundo
moderno. Iniciativas, muitas vezes individuais, porém, têm contagiado o
coletivo. Em Brasília, vizinhos se unem para cuidar da praça, cultivar jardins
ou criar hortas. Tudo pelo bem comum
*Por Renata Rusky
Um dos grandes desafios dos urbanistas hoje é
recuperar a escala humana das cidades. Enquanto arquitetos, engenheiros e
políticos lidam com o problema e, às vezes, o ignoram, grupos de pessoas cuidam
de espaços públicos e tentam, dessa forma, trazer pessoas para as ruas e para o
convívio com a vizinhança. São pequenas iniciativas e intervenções no espaço
público para melhorá-lo e torná-lo mais convidativo.
E que podem fazer a diferença se todos conhecerem e
aderirem. “Um dos pontos-chaves da urbanização é a revalorização dos espaços
públicos tradicionais”, expôs o arquiteto e urbanista dinamarquês Jan Gehl em
palestra no Fronteiras do Pensamento, em outubro do ano passado.
O objetivo dessas iniciativas é transformar a
cidade em um lugar para as pessoas, para o convívio ao nível dos olhos, para a
qualidade de vida. Brasília tem fama de não ser uma cidade calorosa com quem
chega e muitos consideram indispensável um carro para se locomover por ela. Em
seu livro Cities for People, Gehl já citou a capital brasileira como um exemplo
de cidade que representa o que pior pode ser feito em uma cidade: ruas e
avenidas pensadas apenas para automóveis.
Para a arquiteta e urbanista Thaisa Comelli Dutra,
doutoranda em urbanismo pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que
estuda processos participativos no contexto de projetos urbanos, existem mil
maneiras de trazer Brasília para uma escala mais humana, mas falta um debate
mais aberto e sério com a sociedade, que produza projetos bons para todos. “A
população precisa se mobilizar para conhecer projetos, participar de debates
urbanos e tomar para si o poder e um direito que é de todos: o direito à
cidade.”
A urbanista explica que a capital foi concebida a
partir de paradigmas modernistas com os quais vêm consequências boas e ruins:
“Brasília, para bem ou para mal, nunca será o Rio de Janeiro ou São Paulo.
Dificilmente veremos no Plano Piloto a urbanidade e a densidade que possibilita
o encontro na mesma intensidade que vemos em outras metrópoles brasileiras e do
mundo. Estamos falando de uma cidade-jardim, com uma escala bucólica que a
diferencia de todas as outras do mundo.”
Pequenas iniciativas, porém, tentam promover o
encontro entre moradores. Uma forma de empoderamento dos cidadãos.
Manoel (D) orgulha-se de ter
plantado as árvores que embelezam a praça: com a ajuda de moradores, como Ciro
Jitiako, mantém o espaço limpo
A praça é nossa
Manoel Esteve Filho, 52 anos, é zelador e morador
de um prédio no Setor Econômico do Sudoeste há quase duas décadas. Quando
começou a trabalhar ali, lembra que era só barro. Alguns anos depois de
conseguir o emprego, uma praça foi inaugurada em frente ao seu bloco. Mas era
só calçada. Não tinha grama ou plantas. Ele, alguns moradores e outros
funcionários da quadra colocaram grama na praça. Depois, as árvores. “Fomos nós
que plantamos essas palmeiras todas”, orgulha-se.
E Manoel continua, até hoje, cuidando de tudo. As
mesmas latas de lixo estão lá há 16 anos. Os fundos furaram. Portanto, ainda
que as pessoas tenham a consciência de jogar lixo no lixo, não adianta: vai
cair no chão.
Ele junta tudo e deixa a praça limpa. As latas se
degradaram, as árvores cresceram, mas a noção de cidadania de Manoel
permaneceu. Quem passa por ali pode, inclusive, tomar um café no bloco dele.
“Eu deixo a cadeira ali. É só chegar e sentar”, convida.
O zelador conhece tanta gente que alguns o
cumprimentam, mas ele não tem certeza de quem são. “Vi muitos crescerem. Tinha
menino de 10 anos que brincava na praça e hoje tem 26. São meus amigos. ” Já
não há tantas crianças como antigamente. Nem por isso Manoel pensa em abandonar
a praça. Até porque também faz uso dela. Há noites em que ele e alguns amigos
preparam churrasco. Muito respeitosos, nunca receberam reclamação de barulho.
Outros zeladores e moradores ajudam Manoel. Um dos
mais ativos é Ciro Jitiako, 62, aposentado. Ele não mora no mesmo prédio que
Manoel, mas, da janela, também consegue observar a praça. Vive ali há 12
anos.
Quando se mudou para a região, ainda trabalhava,
portanto, o tempo era mais limitado. Aparecia no fim do dia e tentava dar uma
mão a Manoel. “Eu sempre caminhei muito por aqui. Passava, via o lixo e ia
juntando”, conta. Hoje, quase não vê mais lixo no chão e acredita que tem uma
parcela de responsabilidade nisso.
Do outro lado da rua, há um grande gramado, que
costumava ser depósito de entulho. Ele e Manoel se engajaram para tentar tirar
tudo. Manoel levou até foice. “Eu acho que o poder público tem que dar esses
espaços pra gente, é nossa responsabilidade cuidar dele. Se nos revezarmos, o
trabalho não fica pesado pra ninguém”, opina Ciro. Segundo ele, sempre que
alguém passa e vê os dois cuidando do local, diz que depois volta para ajudar.
Quase ninguém cumpre a promessa, mas ele mantém a fé.
Em tempos de racionamento, há quem passe pela
horta, enquanto é regada, e vocifere alguns desaforos. Consideram desperdício.
Até alguns meses atrás, o grupo usava um hidrômetro disponível ali, mas ele foi
retirado e, agora, os moradores precisam levar água em garrafas. Segundo o
Instituto Brasília Ambiental (Ibram), responsável pelo Bosque do Sudoeste, o
hidrômetro tinha sido instalado pela empresa que construiu o parque e o
desligamento foi solicitado assim que a obra terminou. Por um engano da Caesb,
porém, ele ficou. Ao descobrir que o relógio ainda estava sendo usado, a água
foi cortada.
Dona Ikuyo pede água a todos que passam. O pequeno
Francisco Nunes, 5 anos, passeava com a babá, Maria Mendes de Souza, 43, quando
viu a movimentação por ali. Interessou-se e voltou no dia seguinte com uma
garrafa de água para regar as plantas. Não tinha quem não se derretesse com a
cena. Ele ainda usava uma camiseta que dizia: “Proteja a natureza. Sua ajuda é
importante com certeza”.
A mãe de Francisco, a servidora das Nações Unidas
Giovana Nunes, 42, conta que a família decidiu morar ali exatamente por ser um
lugar que propicia o cuidado da natureza. “Nosso prédio também tem uma
hortinha. Muita gente planta no parquinho da nossa quadra. E não é de ninguém,
é de todo mundo. Costumo explicar para ele que a gente tem que cuidar, tirar o
lixo.”
Em tempo de racionamento,
Francisco faz a sua parte: leva água para regar as flores
Nem todos, porém, pensam assim. Enquanto uns levam
água para ajudar, outros reclamam quando veem plantas serem regadas. “As
pessoas não entendem que isso aqui é para todos”, diz Ikuyo.
Rogério Lúcio Viana, coordenador do Programa de
Agricultura Urbana do Emater-DF, está familiarizado com o problema. “A questão
de usar água potável em um jardim, em vez de para uso mais nobre, que é a sede,
gera polêmica”, explica. O ideal, segundo ele, seria um sistema de captação de
água, mas ele pode ser muito caro. “Temos um projeto encaminhado para a Adasa
para uma horta ao lado da Igreja Messiânica. A proposta é fazer a coleta de
água do telhado e instalar um poço, mas é um projeto de cerca de R$ 150 mil”,
exemplifica.
Para Viana, com a maior procura das pessoas por
alimentação saudável, por produtos naturais e sem agrotóxico, as hortas
comunitárias se tornaram uma ótima opção. E as vantagens não param aí. Ele
acredita que é uma forma de estimular quem não tem costume de comer esses
alimentos a fazê-lo. “O que observamos é que também vira um ponto de
convivência com a família e traz um espírito de vizinhança que falta em
Brasília. Sem falar nos aspectos indiretos: é uma boa vitrine para educação
ambiental, reciclagem de lixo composto orgânico para usar de adubo.”
Ronaldo Weigand idealizou a
horta da 416 Norte: um ano inteiro sem comprar legumes
Mentalidade coletiva
Na SQN 416, foi criada uma consciência coletiva
forte. Do costume de fazer festa para as crianças, vieram novas iniciativas,
como a de cultivar uma horta para todos. A ideia veio de Ronaldo Weigand, 50,
consultor na área de meio ambiente, e de sua mulher. Ele conta que ela já tinha
o costume de fazer a chamada “jardinagem de guerrilha”. “Ela cuidava de alguns
canteiros pela quadra”, conta Ronaldo.
O casal percebeu que podia fazer mais,
principalmente porque já integravam um grupo da quadra engajado em fazer
intervenções positivas nela, o Coletivo 416 Norte. Em julho de 2014, criaram a
horta. No início, eram só quatro canteiros. Hoje, é bem maior. “Nossa lógica é
a de qualificar a área pública”, explica Ronaldo. O projeto cresceu tanto que,
no ano passado, ele nem precisou comprar verduras. Este ano, a situação ficou
mais difícil por causa da seca e do racionamento de água. O consumo, segundo
ele, é baixo, o equivalente ao gasto de uma só pessoa por dia. Mesmo assim,
ficaram constrangidos e diminuíram o consumo.
Na realidade, são duas hortas, uma de medicinais,
com cerca de 40 espécies, e outra com variedades de verduras e legumes, como
berinjela, almeirão, alface. Em geral, tem-se a seguinte ética: quem colabora
colhe de tudo. Quem não, restringe-se às ervas e às plantas medicinais. Mais do
que o consumo das plantas, o objetivo do Coletivo 416 Norte é incentivar o
sentido de vizinhança. “Tem gente que diz que nossa felicidade vem 50% do nosso
corpo, 10% da nossa vida profissional e 40% do convívio com a comunidade.
Queremos colaborar com essa última parte”, explica Ronaldo.
Plantando o que come
Soledade Pena Chaves teve a
ideia; Albertino Gabriel da Silva executou: horta abastece moradores
Tudo começou com uma horta pequena em um caixote de
madeira. O porteiro Albertino Gabriel da Silva, 38, cresceu na Paraíba
aprendendo a plantar de tudo. “Eu adoro mexer com terra e uma moradora sempre
sugeria que plantássemos aqui”, lembra. Morador de Águas Lindas, também tem uma
horta em casa. Depois da pequena plantação, o síndico se animou e resolveu
aumentar. Embora seja uma iniciativa de um único bloco, qualquer pessoa pode
pegar o que quiser, com bom senso, claro.
A moradora em questão é Soledade Canavarro Pena
Chaves, empresária. Antes de se mudar para esse bloco, no qual mora há 25 anos,
sempre viveu em casa e sentia falta de ter mais verde e, principalmente, de
poder se alimentar daquilo que colhe. Quando para o carro na garagem, passa na
horta e retira couve para fazer um suco verde para ela e a filha. Simples e
saudável. Quase todo dia, retira alguma coisa. Soledade também já contribuiu
com muita semente. E não se cansa. Vira e mexe, compra algo para incrementar a
horta.
Já tem quase um ano que a pequena horta se tornou
grande. Hoje, colhe-se ali cebola, coentro, salsa, alho, alho-poró, rúcula,
alface, tomate, couve, boldo, alecrim, poejo, marcelinha, citronela e muito
mais. Dos 24 apartamentos do prédio, Gabriel calcula que moradores de 18 costumam
se servir das plantas. Ele traz o almoço de casa e tempera lá. “No início,
plantar tudo deu trabalho. Agora é só regar”, conta. Usam adubo e plantas que
servem como inseticidas naturais. “Se for pra colocar agrotóxico, então, é mais
fácil comprar no supermercado. Está todo mundo ficando doente por causa disso”,
reclama.
Para Gabriel, as maiores vantagens de plantar o que
se come é se alimentar de mais produtos naturais e ter tudo fresco e orgânico à
mesa. Como exemplo, cita a filha de 5 anos. Acostumada a consumir tudo o que
vem da horta, ela bate um prato de salada feliz e sem reclamar. O porteiro
ainda aponta um benefício a mais: “Gosto de plantar nem tanto para comer. Adoro
ver as coisas crescerem e ficarem bonitas.” Do outro lado da horta, ainda há
uma plantação de abóboras. “Teve época que tinha mais de 20 abóboras aí,”
"Isso aqui virou um ponto
de referência para muitos. Também acolhemos muita gente solitária, que chega a
Brasília e não conhece ninguém" Ikuyo Nakamura, enfermeira
Cultivando amigos
A enfermeira Ikuyo Nakamura, 63, admite que achou
que morreria de tanto tédio quando se aposentou. Arrumou, no entanto, muitas
atividades para o tempo livre. Uma delas é cuidar de uma horta localizada na
área externa do Parque do Bosque do Sudoeste. Quem passasse por ali há três
anos, só veria um terreno baldio, com materiais de construção jogados. Dona
Ikuyo dá o devido crédito a quem começou a horta. “Era um morador da 301. Deu
um duro danado aqui. Infelizmente, ele se mudou.” Desde então, o local foi
deixado aos cuidados de Ikuyo e de diversos outros amigos, que se revezam. Cada
um tem seu dia de regar as plantas.
Em julho, faz dois anos que Ikuyo se engajou na
causa. Antes, não entendia nada de plantação. Aos poucos, foi aprendendo as
peculiaridades de cada planta. A horta, porém, não lhe trouxe só conhecimento e
muitas delícias para temperar e fazer chás, proporcionou também uma vida social
ainda mais divertida. Toda primeira noite de lua cheia, o grupo faz um luau
ali. Também organiza festas fora dali, para dançar e se divertir. “Isso aqui
virou um ponto de referência para muita gente. Também acolhemos muita gente
solitária, que chega a Brasília e não conhece ninguém.”
Do outro lado da rua, Nivaldo Rodrigues de Melo,
55, servidor público, já havia plantado algumas árvores. Atravessou a pista e
passou a ajudar com a horta e com o jardim também. Para ele, é uma forma de
agregar as pessoas. Faz parte do cotidiano dele cuidar da natureza e ter uma
vida mais sustentável: vai de bicicleta ao trabalho e passa na horta tanto na
ida quanto na volta. “Quando a comunidade se une, é muito melhor. As pessoas
têm uma cultura individualista. Se essas hortas e jardins fossem ampliados para
toda a cidade, em todas as quadras, isso mudaria. Não adianta só esperar do
poder público.”
Nivaldo, Ikuyo e todos os outros incrementaram
muito a horta. Plantaram flores em forma de mandala. Procuraram auxílio de um
grupo de agricultura urbana. Aprenderam truques para manter a umidade do solo
por mais tempo e, dessa forma, gastar menos água. Conseguiram afastar os
lagartos da plantação só com o cultivo das plantas corretas. E têm quase
diariamente que lidar com roubo de mudas. São muitos desafios, mas nenhum como
o atual: o da falta de água.
(*) Renata Rusky - Fotos: Marcelo
Ferreira/CB/D,A.Press - Correio Braziliense