Todos os dias é o jornaleiro quem dá as notícias em primeira mão e acaba
virando um amigo dos clientes assíduos. Conheça histórias de quem leva a
informação às mãos do leitor
Primeiro jornaleiro de Brasília, Lourivaldo Soares Marques está na 108
Sul há 57 anos
*Por Otávio Augusto
Ele é testemunha do cotidiano da gente. Pela observação ou pelas
páginas, o jornaleiro conhece as preferências do cliente, a rotina da cidade e
até a situação financeira dos fregueses e do país. Conversa com um, ajuda o
outro, e assim vai tocando o dia a dia. Nem o fato de estar de pé ainda na
madrugada para receber os exemplares tira o seu bom humor. Sem a disposição do
jornaleiro, não seria possível a notícia encontrar o leitor.
Sejam boas ou más, para eles, o importante é levar a informação. Alguns
criam um ambiente tão convidativo que chega a ser maldade não dedicar uns
minutinhos a mais na banca. Na verdade, o jornaleiro acaba desenvolvendo uma
relação de amizade com o freguês. Hoje, as bancas trazem atrativos. Algumas se
parecem com conveniências. No dia do jornaleiro, comemorado hoje, o Correio
conta a história desses personagens que são um tesouro da capital.
Bom de papo, Lourivaldo Soares Marques, 79 anos, recebe quem passa pela
banca da 108 Sul com um agrado. Ele explica com poesia: “Na banca do
Lourivaldo, todo mundo demora um pouco. Lá tem sombra e água de coco”. Eita
sujeito bom de conversa. Aborda todos com gentileza e uma boa história para
contar. Ressalta que faz parte da profissão. “O jornaleiro é amigo, confidente,
pessoa de confiança. Aqui guardamos a chave de casa, passamos o olho no neto de
clientes”, conta.
Lourivaldo é patrimônio da cidade. Está naquele local há 57 anos. É o
primeiro jornaleiro de Brasília. “Quando viemos da Bahia para cá, só tinha
poeira. Vendi poeira engarrafada para turista. Quando o Correio Braziliense
começou a circular por aqui, nem rua a cidade tinha. Ajudávamos a montar o
jornal para vender”, lembra o pioneiro. Ele plantou mudas de fícus, em 1963,
abriu uma passagem no meio dos troncos e garante: basta passar por baixo e
fazer três pedidos.
Há quem se lembre do plantio das árvores. Era setembro, mês de seca
inclemente. Quem conta é o bancário aposentado Dilson Furtado de Almeida, 83
anos. “Eu não imaginava que isso daria certo”, brinca. Até hoje, o carioca é
cliente de Lourivaldo. “Compro o jornal, jogo conversa fora. Ele viu meus
filhos e netos crescerem, é da família”, homenageia. A amizade beira as seis
décadas. A mulher dele, Lisete Almeida — que não revela a idade nem sob decreto
— emenda: “Não teve um dia que vi esse jornaleiro de mau humor”.
Mercado em movimento
Atualmente, são 600 bancas pelo DF. A maior parte delas está no Plano
Piloto (190). Mas elas também estão espalhadas por Taguatinga, Guará,
Samambaia, Ceilândia e Sobradinho. Foi neste espaço de poucos metros quadrados
que o jornaleiro Edinaldo Alves, 53, criou os dois filhos. “É um trabalho de
domingo. O bate-papo que tinha nas bancas era gostoso. As relações que se
construía. Éramos ponto de referência, o vizinho amigo”, pondera o mineiro de
sotaque carregado.
Durante 12 anos, Edinaldo era encontrado na QI 12 do Guará. Deixou a
banca — até hoje o local funciona — para se ocupar das tarefas do Sindicato dos
Jornalistas. Saudade mesmo é da rotina de antigamente. “Era muito animado.
Muitas vezes eu dispensei cliente por não ter jornal”, conta. Fatos históricos
ficaram marcados na memória. “Quando um time era campeão, as pessoas disputavam
o jornal por causa do pôster. Lembro que quando Ayrton Senna morreu (o piloto
de automobilismo se acidentou em maio de 1994) as pessoas fizeram fila na
banca. Liam e reliam a manchete várias vezes. Isso acontecia a cada escândalo
político, acidente aéreo”, detalha.
Quais são os segredos para continuar a atrair o leitor? Edinaldo dá
pistas. “A relação humana é o que vai prevalecer. A interação, o afago e a
gentileza que vão determinar o futuro. Não é só transformar a banca em uma
conveniência, ou ter outros artigos para vender. As pessoas querem atenção”,
pondera.
Uma vida na banca
Histórias como a de Lourival e Edinaldo se repetem um sem número de
vezes. Como Francisco, da banca da 314 Norte; Edna, na 103 Sul; José Livino, na
113 Sul; e Antônio Renato, no Setor Leste do Gama. São gerações de jornaleiros
que dedicam a vida a repassar a informação. Com a mesma energia de 40 anos
atrás, Gabriel Vasconcelos, 62 anos, abre a banca da 316 Sul às 6h30. “Tem dia
que fecho por volta das 21h30”, conta, orgulhoso.
O cearense de riso fácil é um exemplo de disposição. Corre 8km pelas
ruas do Guará, onde mora, três vezes por semana. Os moradores da quadra
garantem: pouco se vê Gabriel sentado. Ele se vangloria. “Mantenho o mesmo
ritmo de quando eu cheguei aqui. Já vendi 1,2 mil exemplares num dia e pouco me
cansei”, ressalta.
Com o trabalho, Gabriel teve a oportunidade de conhecer alguns agentes
políticos do mais alto escalão. “Passaram por aqui muitos ministros e
desembargadores. Meus filhos brincavam com os deles. Alguns eram mais
simpáticos e gostavam de conversar. Outros eram mais reservados e evitavam o
contato mais próximo”, lembra. Encerrou a entrevista à espera de um freguês,
que havia reservado um exemplar do jornal.
Atuação
Segundo os livros de história, os jornaleiros contam com quase 160 anos
de história no país. Tudo teria começado com escravos que saíam pelas ruas
gritando as principais manchetes dos jornais. A atividade ficou popular a
partir de 1860, quando as edições passaram a ser vendidas avulsas. Coube a
imigrantes italianos, chegados ao Brasil no século 19, a expansão da atividade,
paralela ao desenvolvimento da imprensa. À época, os gazeteiros, como eram
chamados, não tinham ponto fixo, perambulando pela cidade com as pilhas de
jornais amarradas por uma fita de couro. Depois, surgiram as bancas que serviam
de ponto de venda para clientes e de retirada de edições para os jornaleiros
andarilhos.
O que diz a lei?
Ao longo das décadas, a legislação das bancas de jornal foi atualizada.
Em 1992, a Lei Distrital nº 324 permitiu a venda de salgados, balas, sorvetes,
artigos de armarinho e artesanato nos espaços. Essa foi uma medida para
modernizar e aumentar o público. Mais tarde, em 1998, o Decreto nº 19.883
renovou as normas e detalhou regras de espaço e funcionamento. Desde então, as
renovações de concessão são feitas a cada 10 anos. Em 2011, ocorreu a última.
No ano seguinte, segundo o Sindicato dos Jornaleiros, 90% das bancas estavam
regularizadas. Uma nova concessão deve ocorrer em 2022.
(*) Otávio Augusto – Fotos: F. Gualberto/CB/D.A.Press – Carlos
Vieira/CB/D.A.Press – Correio Braziliense