Alvo de notícias falsas, Judith Butler foi até
agredida
“Queimem a bruxa!”, berram extremados empunhando
crucifixos, antes de reproduzir simbolicamente o ritual clássico da Inquisição
contra hereges. O fogo é ateado à boneca com o rosto da filósofa Judith Butler,
professora da Universidade da Califórnia, em Berkeley, nos Estados Unidos, uma
das principais referências nos estudos de gênero, cujo combate se tornou
principal tópico da plataforma de políticos brasileiros da extrema direita. A
cena se deu na semana passada, diante do Sesc Pompeia, em São Paulo, onde Judith
proferiu palestra a convite da Universidade de São Paulo (USP) sobre outro
tema: “Caminhos divergentes – Judaicidade e crítica do sionismo”, no contexto
do seminário “Os Fins da Democracia”.
A “versão corrente” sobre o que seriam os estudos
de gênero que motivam manifestantes enfurecidos, também transborda à classe
média, junto a eleitores medianamente engajados, sob o batismo de “ideologia de
gênero”.
VERSÃO TOSCA – Trata-se de interpretação
que vem à sombra de vídeos e notícias falsas que circulam pelas redes sociais,
que, em sua versão mais tosca, dá conta de que essa “ideologia destrói a
família e pretende mudar a orientação sexual de seu filho nas escolas”. O que
de fato sejam os estudos de Judith Butler pouco importa, na “bolha” virtual de
relacionamentos que reproduz a desinformação e rechaça como “mentirosos” todos
e quaisquer argumentos em direção contrária.
O caso da filósofa é apenas mais um em que a crença
é dissociada do conteúdo real, sobrepondo-se aos fatos por meio de milhares de
notícias falsas, estrategicamente produzidas e compartilhadas nas redes
sociais.
ATIVISMO VIRTUAL – Auxiliado por robôs
eletrônicos, os espalhadores de notícias manipuladas fazem os algoritmos manter
ativo o conteúdo nas timelines. Verdadeiros ou não os argumentos, o ativismo
virtual no mundo todo se transforma em ação política material porque influencia
na formação de opiniões políticas.
A eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, o
Brexit na Inglaterra, a crise da Catalunha na Espanha, as eleições francesa e
alemã e, no ano passado, a mobilização pelo impeachment de Dilma Rousseff, são
exemplos. Mas não os únicos.
No Brasil, as fake news têm sido usadas por todos
os partidos, da direita à esquerda, crescentemente nas eleições gerais e
municipais a partir de 2008.
BATALHA PERDIDA – Embora o presidente do
Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro Gilmar Mendes, tenha anunciado a
formação de um comitê no âmbito da Justiça Eleitoral, para enfrentar o que ele
chama de “notícias falsas” nas eleições de 2018, essa é uma batalha que já
nasce perdida: a começar pela tênue linha entre a censura e a identificação das
notícias falsas. E a terminar pela dificuldade, não do monitoramento, mas da
suspensão desse material, armazenado no exterior.
“Nas eleições de 2018 o volume de fake news vai
superar de longe o de todas as eleições anteriores”, acredita a cientista
política e pesquisadora Helcimara Telles, da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG), coordenadora do grupo Opinião Pública. Ela constata que cresce a
tecnologia com emprego de robôs para impulsionamento nas redes sociais e
acumula-se expertise para ataques cognitivos sofisticados, porque são dirigidos
aos segmentos de eleitores segundo as suas preferências registradas nos
algoritmos.
DISCURSOS DE ÓDIO – “Movimentos on-line de
extrema-direita, que em nome de uma radical liberdade de expressão, professam
valores de intolerância, discursos de ódio, extremamente dogmáticos e negando
qualquer afirmação que possa ser comprovada em métodos científicos, crescem no
mundo todo”, avalia Helcimara Telles.
“No Brasil, esses grupos contestam que tenha
existido uma ditadura no país, espalham que o nazismo foi um fenômeno da
esquerda, interpretam fatos segundo o seu interesse, atacam movimentos
feministas e fazem a caricatura dos estudos de gênero, cooptando muitos jovens
pelo desalento com a representação política e pela linguagem que utilizam na
internet”, diz a pesquisadora.
Num contexto de polarização política – em que
extremos estão motivados ao ativismo –, o Brasil tem todos os ingredientes para
a ebulição do caldo da insegurança sobre o que venha a ser verdade e mentira
nas eleições de 2018.
BOLHAS NARRATIVAS – Além dos usuários das
redes interagirem, preferencialmente, com pessoas com quem partilham ideologias
e visões de mundo – formando as chamadas bolhas narrativas –, os brasileiros
estão, ao lado dos chilenos, entre os usuários das redes que mais compartilham
informação no mundo: 64% têm esse tipo de engajamento, segundo pesquisa feita
este ano com 70 mil pessoas em 36 países pela Reuters Institute for the Study
of Journalism, da Universidade de Oxford, na Inglaterra. Ao mesmo tempo, 65%
usam smartphones, portanto, levam o clique e a possibilidade de
compartilhamento para onde vão. E mais: 60% acreditam nas notícias com as quais
interagem, que chegam principalmente pelo Facebook e pelo WhatsApp.
“Nesse cenário de bolhas narrativas, em que as fake
news pipocam e se reproduzem indiscriminadamente por instant messages com
notícias que as pessoas acreditam ser verdadeiras, podem ser produzidos mundos
alternativos, e realidades paralelas, que permitem que as pessoas acreditem que
a terra é plana”, afirma Marco Konopacki, administrador e cientista político do
Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio, em referência ao movimento virtual
internacional que advoga essa teoria.
NÃO HÁ DIÁLOGO – “As pessoas são
envolvidas numa bolha de argumentos e atacam qualquer um que apresente
informação contrária. Esse comportamento explica, por exemplo, a formação de
grupos radicais que acreditam que a terra seja plana e mesmo as distorções em
torno dos estudos de gênero”, acrescenta.
Para lidar com as fakes news que circulam na
internet, não há novidades para 2018. O ato é crime. “A lei veda o anonimato,
prevê multa e a retirada imediata do conteúdo do ar. Dessa forma, as fake news
continuam tratadas com a mesma disciplina de antes, que inclusive, até
criminaliza essa ação”, sustenta Edson Resende, da Coordenadoria Estadual de
Apoio aos Promotores Eleitorais (Cael).
“A veiculação de fatos
inverídicos, injuriosos e difamatórios é um tipo penal. Além disso, no contexto
das eleições, basta que o fato seja mentira para que constitua crime
eleitoral”, adverte Resende.
Bertha Maakaroun
Correio
Braziliense