Ocupação
amorosa
*Por
Severino Francisco
Durante a década de 1970, a maioria dos
brasilienses tinha relação de tal aleamento com a cidade que o irreverente João
Evangelista, professor da UnB, sugeriu que fosse criada a associação de não
moradores de Brasília. Talvez Brasília tenha sido a cidade que mais sofreu as
consequências funestas de ser a capital de um país sob o regime de uma ditadura
militar. Qualquer aglomeração ou ocupação dos espaços públicos era vigiada e
reprimida.
Felizmente, esse tempo passou e o brasiliense abraçou amorosamente a cidade. Mas, apesar da mudança radical de atitude, a imagem negativa de Brasília ainda é aquela construída pelos grandes teóricos da arquitetura e do urbanismo.
O livro A cidade modernista — Uma crítica de Brasília e sua utopia, de James Holston (Ed. Companhia das Letras) se tornou uma referência canônica. A maioria dos pesquisadores e estudiosos do urbanismo repete, mecanicamente, a condenação sumária de Holston ao projeto de Lucio Costa. Virou suposta verdade científica sobre Brasília.
Jan Gehl, arquiteto e teórico que defende o espaço dos pedestres e ciclistas nas cidades, criticou duramente a capital modernista. Sentenciou, sem meias palavras, que Brasília é bonita e agradável vista de avião, embaixo, no chão da vida real, era “uma merda”. Enquanto isso, James Holston escreveu que a vida do brasiliense “era triste”, pois vivia a rotina de se mover da repartição para a superquadra.
A crítica seria perfeita se não fosse por um detalhe. E é isso que o professor de arquitetura e cineasta Frederico Holanda fez no documentário Deserto, mas sem usar nenhuma palavra.
Ele usa as sentenças de Gehl e Holston como epígrafes e as confronta com imagens cotidianas dos brasilienses no Eixo Rodoviário, na Rodoviária e arredores e na Esplanada dos Ministérios e na Praça dos Três Poderes. As imagens têm a leveza de uma sinfonia. Elas desmentem e implodem com as supostas verdades canônicas dos teóricos.
Revelam que a cidade não é nada desértica. O Eixão do Lazer, a Rodoviária e as superquadras são espaços experimentais de convivência, de fruição e de participação política. Os brasilienses ostentam uma imensa criatividade em ocupar e humanizar os espaços da cidade. Os quiosques, os pequenos pontos de comércio ou a comida de rua proliferam.
É impressionante o desfile de bicicletas dos mais inimagináveis modelos no Eixão, quase sempre carregadas de crianças. Não se trata de uma visão ufanista. Brasília tem muitas mazelas, as calçadas são um perigo, as ciclovias são precárias, os equipamentos públicos padecem de falta de manutenção e os espaços culturais caem aos pedaços.
Mas os brasilienses aprenderam a se apropriar dos espaços. Eles abraçaram amorosamente a cidade. As críticas dos doutores são perfeitas. Só esqueceram de perguntar aos brasilienses o que acham de Brasília.
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Severino Francisco – Jornalista, colunista do Correio Braziliense –
Fotos/Ilustração: Blog - Google