JK não alimentava rancor nem ódio. Tinha coisa mais
importante a fazer
Crônicas urbanas, crônicas de amor e do viver (Conceição Freitas)
Como quem consulta um oráculo, abri ao acaso um
livrinho de 95 páginas, Elegias de Duíno, e Rainer Maria Rilke, poeta da vida e
da morte, do amor e da dor, do belo e do terrível, me entregou os versos
abaixo:
“Estranhas ruas da Cidade-Aflição,
onde,
no aparente silêncio feito de
estrépito
irrompe violento, gerado no molde
do vazio,
o ruído do ouro, o monumento
trepidante.
Oh, como, sem deixar vestígios, um
Anjo andaria
em seu mercado de consolo que a
igreja limita,
a igreja comprada feita: limpa,
fechada e tristonha
como os correios aos domingos…
Fora, está sempre
a feira de encapelado contorno.
Balanças de liberdade!”
Quando fizer 60 anos, e falta um ano e pouco, a
Cidade-Aflição vai se partir em duas – uma vai tirar proveito da data redonda
para festejar uma cidade que não lhes pertence e com a qual não se identificam
e a outra… A outra vai ter de honrar o comunista (Oscar), o humanista (Lucio),
o democrata (Juscelino) e os 60 mil brasileiros que a construíram.
Em 1964, uma revista italiana publicou um texto que
culpava Brasília pelo golpe militar (vejam até onde pode chegar o raciocínio
delirante). Em resposta, a arquiteta Lina Bo Bardi enviou aos editores uma
carta memorável na qual, lá pelas tantas, dizia que a construção da cidade
representou “um impulso de libertação de um grande país.” Foi esse desesperado
desejo que criou as condições para que Brasília fosse construída em tão pouco
tempo e em condições tão improváveis.
Vale a pena ler mais um pouco da carta de Lina: “A
fragilidade dialética de Brasília é apenas a fragilidade de hoje. A pesada
alternativa de toda a cultura atual: uma cultura pobre – milhões de homens
desesperados, prontos para o ataque –, uma herança totalmente desmistificada –
um mundo totalmente nu, seco, feito de milhões de homens, sem arrebatamentos,
sem saídas. O problema de todos, hoje, é o de construir, com esse pobre
material, uma cultura.”
O impulso libertador que construiu Brasília ainda
deve estar por aqui, no fundo do Lago, na raiz profunda das árvores do cerrado,
nos jardins de pedra, na ferrugem da terra. É dele que vamos nos alimentar e é
com ele que temos de aprender a suportar com altivez e paciência, com silêncio
e ao mesmo tempo com alegria, os tempos de trevas.
O silêncio pode ser revolucionário. Mais ainda, se
usado quando a vontade for de avançar sobre quem nos ameaça. Faz muitos anos, o
psicanalista Humberto Haydt lembrou, num de seus seminários, a cena em que a
personagem de Meryl Streep, em A escolha de Sofia, tem de escolher qual dos
filhos vai entregar ao nazista – ele pede a mãe que entregue um dos meninos. Ou
os dois seriam mortos. Sofia, sugeriu Haydt, deveria ter dito ao nazi: “Escolha
você”. Assim, devolveria a ele a carga da decisão. Se desejava ativar a
crueldade ao nível máximo, ele que lidasse com sua perversidade.
O exemplo é absurdamente extremo – e esperemos que
continue sendo. Deu pra ver já no dia 1º que há um chamamento para o confronto.
A cada provocação, a cada derrota, é preciso pelo menos tentar devolver ao
outro aquilo que não nos pertence.
Brasília nos pertence – ela é muito mais que um
projeto urbanístico com alguns equívocos. É um gesto de fé na humanidade, na
democracia, na cultura, na educação libertadora – aqui estavam Darcy Ribeiro e
Anísio Teixeira, aqui se tentou inventar uma cidade melhor para um mundo
melhor. Juscelino não alimentava rancor nem ódio nem desejo de vingança – ele
tinha coisa mais importante a fazer.
Brasília é propositiva, afirmativa. É fonte de inspiração, Brasília. Mais ainda agora.
Por Conceição Freitas - Fotos: Arquivo Nacional - Metrópoles