A
história de amor de Ernandes e Mariana, mais bonita não há
Crônicas
urbanas, crônicas de afeto e do viver – (Conceição Freitas)
Andarilhos seguem a correnteza
das estradas. Os passos ritmados, a paisagem vagarosa, o sangue
veloz, o barulho dos carros e caminhões, a vida sob o tempo. Um viver sem
espera. Um ir ao encontro de não se sabe o quê. Ir, tão somente.
Ernandes passou quase toda a vida andarilhando. Filho de pai alcoólatra,
14 irmãos, aceitou o convite de um amigo para sair mundo afora. Adolescente,
deixou o Rio e pegou o rumo de Porto Alegre, pelas margens das rodovias. Logo,
o parceiro virou na encruzilhada, e Ernandes ficou só com as próprias pernas.
Chegou à fronteira com o Uruguai, ganhando algum trocado na diária da roça,
ajudando caminhoneiro em apuro, lavando banheiro em posto de gasolina.
Nada, porém, o prendia. Era guiado pelo desejo semovente de nunca estar
no mesmo lugar.
Andarilhos seguem a correnteza
das estradas. Os passos ritmados, a paisagem vagarosa, o sangue
veloz, o barulho dos carros e caminhões, a vida sob o tempo. Um viver sem
espera. Um ir ao encontro de não se sabe o quê. Ir, tão somente.
Ernandes passou quase toda a vida andarilhando. Filho de pai alcoólatra,
14 irmãos, aceitou o convite de um amigo para sair mundo afora. Adolescente,
deixou o Rio e pegou o rumo de Porto Alegre, pelas margens das rodovias. Logo,
o parceiro virou na encruzilhada, e Ernandes ficou só com as próprias pernas.
Chegou à fronteira com o Uruguai, ganhando algum trocado na diária da roça,
ajudando caminhoneiro em apuro, lavando banheiro em posto de gasolina.
Nada, porém, o prendia. Era guiado pelo desejo semovente de nunca estar
no mesmo lugar.
Desde esse encontro na Dutra, os dois
nunca mais se deixaram. Eles não conversavam muito. Ele, silencioso por
natureza. Ela, um tanto confusa e irritadiça. Dizia que tinha nascido em
Piraju, Minas, e que havia sido expulsa de casa porque jogava pedra nos outros.
Só se acalmava quando estava perto de Ernandes. Longe dele, ela voltava a
atirar pedra. “Até hoje”, ele me disse em meados de 2005.
Pelas contas que fiz a partir das
informações imprecisas de Ernandes, eles se conheceram por volta de 1956. Pouco
depois, tiveram notícia de que uma nova capital do Brasil estava
sendo construída no Goiás. Seguiram as veredas do Planalto Central e
participaram da construção da cidade. Não consegui
saber qual o ofício de Ernandes. Tiveram um filho, Sebastião, que à época da
entrevista cumpria pena na Papuda. “Ele era igual a nós, mas os colegas fizeram
a cabeça dele e ele ficou atrapalhado da ideia.”
Quando os encontrei pela primeira vez, os dois estavam nas proximidades
do Hospital de Base. Mariana estava dentro da carroça; ele, trazendo um galão
de água. Quem andou por aquelas paragens entre 2000 e 2010 pode tê-los visto.
Uma senhorinha dentro de uma carroça de catador, acomodada sobre papelões e
cobertores, e puxada por um senhorzinho.
Todo o patrimônio de Ernandes e Mariana cabia na carroça: duas cadeiras
de plástico, uma garrafa térmica, um galão de 10 litros de água, algumas
peças de roupa, dois chinelos, uma lona e duas bonecas velhas. Quando Ernandes
precisava deixar Mariana sozinha, ela se distraía com as bonecas e esquecia as
pedras.
Foi assim durante mais de 10 anos, transitando entre o
estacionamento do Hospital de Base, a Rua das Farmácias e o Setor Comercial
Sul. Quando começava a anoitecer, Mariana se agitava. Precisava voltar ao ponto
de partida, às proximidades do hospital, onde uma gata recém-parida a
aguardava. “Ela dá leite pra gata, pra gata criar leite para dar para os
filhotes”, Ernandes me contou com orgulho de quem relata uma grande história.
Numa de nossas conversas, Ernandes avisou: “O sol está de matar, vamos
embora mais cedo”. E Mariana repetiu: “Vamos embora mais cedo”. Foi tudo o que
consegui ouvir dela, a repetição do fim de uma frase de Ernandes.
Algum tempo depois, encontrei Ernandes sozinho, no lugar de sempre. Não
quis conversa comigo. Funcionários dos quiosques em frente ao Eixinho Oeste me
contaram que ela havia morrido e que ele andava muito zangado. Depois, ele
sumiu. Andarilhou.
Conceição Freitas – Arte: Kacio Pacheco - Metrópoles
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CRÔNICA