Aos 88 anos, síndica do Sudoeste é a mais longeva
do país Sábado próximo, Antônia Leal dos Reis completa 88 anos de vida. É hoje,
em atividade, a síndica mais longeva do Brasil e do DF e tornou-se unanimidade
no Sudoeste - Antônia plantou dois ciprestes italianos há mais de 15 anos,
quando tinham menos de 50cm. Hoje, passam dos 20m e são conhecidos como as
Torres Gêmeas do Sudoeste
No dia em que preparava o enxoval para o casamento,
a mãe, a dona de casa espanhola Dolores Fontela Leal disse para a noiva, a
segunda filha, então com 20 anos: “Você tem que colocar os aventais para
cozinhar para seu marido. Mulher precisa cozinhar para o marido”. Ela olhou
para a mãe e disse: “Tudo, menos avental”. No enxoval da noiva, os aventais não
couberam. O pai, o serrador português Manoel Leal, longe da mulher, disse à
filha que ia se casar: “Você tem que fazer o que gosta”. Foi o que Antônia Leal
dos Reis precisava ouvir. Ela, desde aquele dia, só fez o que realmente quis
fazer.
E por fazer só aquilo que gosta e quer, sábado
próximo, 23, ela completará 88 anos. Parabéns! É mais que parabéns! É um tanto
de vida que não cabe nem nela mesma. Hoje, com qualidade de vida, muita gente
chega e passa brincando dos 80 anos. Mas essa mulher tem algo especial, ela é a
síndica mais longeva do DF e do país. Detalhe: ainda trabalhando. A informação
é da Associação Brasileira dos Síndicos e Síndicos Profissionais (Abrassp). Há
27 anos, ininterruptos, é ela quem dá as ordens e as cartas num prédio da
Quadra 103 do Sudoeste. Um bloco com 117 unidades, que reúne comércio e
residência.
Na terça-feira passada, na entrada do prédio, ela
foi agraciada com o prêmio Master Síndico, o mais importante da entidade, que
congrega mais de 25 mil síndicos de todo o país. O diploma lhe foi entregue pelo
diretor da Abrassp, Paulo Roberto Melo. “Apenas 20 pessoas já receberam esse
prêmio”, diz ele.
E ela virou, mesmo sendo síndica, pasmem, uma
unanimidade na quadra. É adorada por todos. Não há exagero no uso da palavra.
Dos porteiros, passando pelos moradores aos empresários da região de classe
média alta. O porteiro e encarregado do prédio, Carlos Silva, 42 anos, o mais
antigo no bloco, não lhe poupa elogios: “Ela é rigorosa. Checa tudo, vê tudo,
cobra cada detalhe. Mas o que mais me impressiona na dona Antônia é a
honestidade e a simplicidade. Ela virou meio mãe de todo mundo aqui”.
Além
do tempo: Mas antes de ela chegar a Brasília e virar síndica, há um monte
de história lá atrás. Voltemos, então, ao interior de São Paulo. Em Garça,
região de Marília, houve o casamento de Antônia e Milton Maganha. Com ele,
viveu por 34 anos. Vieram os três filhos. Era uma mulher cercada por quatro
homens. Um dia, o marido quis se mudar de São Paulo. Comprou uma fazenda em
Maringá. Ia plantar e vender. A família inteira se mudou para o Paraná. E foi
ali que Antônia fez tudo: menos usar avental para cozinhar. “Até sei fazer uma
coisa ou outra, mas sou péssima na cozinha. O que gosto é da parte de
confeitaria”, diz.
Aprendeu a dirigir sozinha. Nos anos 1950/1960,
guiava um Jipe 1954 pelas fazendas das redondezas. Levava e buscava os filhos
na escola. Não só os filhos, mas as crianças das outras fazendas. Ia com a cara
e a coragem, às vezes, inventando estradas que nem existiam. E, para não
depender apenas do dinheiro do marido, aprendeu também a costurar. Passou
a dar aula de costura para as mulheres da região. “Era uma boa modista. Por
isso gosto de moda até hoje”, conta.
Ali em Maringá, a vida seguia seu rumo. Um dia,
Milton viu que os negócios não estavam indo bem. E, mais uma vez, decidiu
recomeçar. Voltou para São Paulo. Os filhos, já maiores, começaram a seguir
também os próprios rumos. Mudaram-se para Brasília. Anos depois, em 1977,
Miguel e Antônia chegaram a Brasília. Antônia contava 46 anos. Milton, 50. Vida
nova na terra de JK. Em todos os sentidos. Ela, intuitiva, queria mais. “Os
meus três filhos estavam criados. Eu já havia cumprido minha missão de mãe. Meu
casamento estava diferente. Eu queria viver.”
A
grande paixão: Antônia foi viver. E viver é, definitivamente, o que lhe dá
mais prazer. “Eu amo a vida. Amo acordar e me sentir viva”, me disse ela,
várias vezes, durante os nossos encontros. Poucos anos depois, divorciada, mas
amiga de Miguel, o pai dos filhos, encontrou um novo amor. Antônia já havia
passado dos 50. “Ele era militar da Aeronáutica, quatro anos mais novo do que
eu”, conta. Foi paixão arrebatadora.
Adiodato José dos Reis foi servir na Embaixada do
Brasil no Uruguai. Montevidéu seria o novo lar. Lá, Antônia teve papel de
destaque. Deu vida e levou alegria ao lugar. “Eu organizei todas as festas nos
dois anos em que vivemos lá. Coloquei o Brasil em destaque. Até festa junina eu
fiz”, diz, mostrando as muitas fotografias de papel e os olhares apaixonados
entre ela e Adiodato.
Antônia lembra as viagens para Buenos Aires. Os
tangos que dançou com seu o amor da maturidade. E o espanhol que fala bem,
aprendido ainda com a mãe espanhola. Os dois anos no Uruguai acabaram. Adiodato
foi para a reforma e voltou para o Brasil. Resolveu morar em Natal. Queria
estar perto do mar. Ali, viveram os últimos anos de amor. Ele morreu,
repentinamente, de um edema pulmonar. “Foram seis anos de muita felicidade,
talvez os mais intensos da minha vida”, relembra, com olhos perdidos de saudade
na sala do seu apartamento.
Viúva, antes dos 60 anos, ela deixou Natal e voltou
para Brasília. Aqui estavam os três filhos, os netos e o ex-marido, que morreu
há pouco tempo. Sempre independente, decidiu também que teria o canto dela,
sozinha. O prédio onde mora e no qual virou síndica estava acabando de
construir. Ela não hesitou. Comprou ali seu apartamento. Foi a primeira
moradora. E, há 27 anos, é a pessoa mais atuante do lugar onde vive e do
Sudoeste, onde chegou quando o bairro era ainda um monte de barro vermelho e
poucos acreditavam que se tornaria uma das regiões mais atraentes e disputadas
do DF.
Uma luta por todos: E a luta dela não é apenas
para o seu quadradinho ou pela quadra onde mora. Juntou-se à campanha pelo
Batalhão da Polícia Militar do bairro. Conseguiu. Está atenta a tudo. Não
deixou que os flanelinhas dominassem, sem critério, o espaço. E, por isso, sem
imaginar, tornou-se unanimidade no espaço onde vive.
“O que mais me impressiona nela é a vitalidade e a
alegria. Ela me dá conselhos. Eu aprendo todo dia com dona Antônia”, diz a
decoradora Mônica Blanco, 40, que morou no prédio e, mesmo fora, sempre passa
lá para uma boa conversa. E entrega, às gargalhadas: “Ela é que me leva para o
bar, para a gandaia”.
Elvi de Sousa, 33, é gerente do Café Tróia, que
reúne café, restaurante e bar, lugar que Antônia sempre frequenta com as
amigas, para ouvir música e tomar a sua caipiroska de kiwi, descoberta recente
e predileta. A gerente virou fã: “Ela tem um jeito de lidar com as pessoas
especial. Trata todo mundo bem, pode ser quem for. No dia em que não vem, a
gente estranha”.
Wiliam Matos, garçom da Padaria Pães e Vinhos,
outro lugar que ela frequenta diariamente, admira-se com a vivacidade da mulher
de 88 anos: “Ela tem uma cabeça incrível. É um exemplo”. A fiel diarista,
Rosa Pinheiro da Silva, de 40 anos e há 11 aprendendo com as lições de vida de
Antônia, emociona-se: “Ela, de patroa, virou amiga. Quando estou com problema é
com ela que desabafo”.
A empresária Vilma Peixoto, 59, dona da Barbearia
Peixoto, que está na quadra há 22 anos e virou subsíndica há quatro, hoje
tornou-se amiga de Antônia. “Sou aprendiz dela. O que mais me chama a atenção é
que ela percebeu que o mundo evoluiu e ela teve flexibilidade para evoluir com
o mundo”. E rasga elogios: “Gosto da modernidade dela, da forma como se veste,
das roupas coloridas, do astral. Ela não fala de dores, de tristeza”. Antônia é
moderna sem rede social. Ela prefere a vida real: “Tenho um celular, mas quase
não atendo. O telefone fixo de casa resolve. Eu gosto de ver as pessoas nos
olhos, lidar com elas”.
Amor
de família: Se Antônia é unanimidade no lugar onde vive, não seria
diferente entre a família — os três filhos, seis netos e quatro bisnetos. O
filho caçula, Carlos Eduardo Maganha, 60, corretor da Bolsa Nacional de
Mercadoria e morador do Park Way, fala com voz embargada ao descrever a mãe: “A
minha maior admiração é ela ser justa. Sempre teve uma noção de justiça muito
forte. E admiro a independência e a coragem como enfrentou a vida, nunca se
dobrou por nada. O tempo não foi inimigo”. A cada domingo, ela vai para casa de
um filho. É o almoço sagrado. “Mas ela sempre volta para a casa dela, não
aceita dormir na casa de nenhum de nós. Ela é muito independente”, entrega
Carlos Eduardo.
A nora Adelaide Maganha, 59, corretora de grãos e
mercadoria, reflete: “Ela luta pelo bem-estar de todo mundo. É uma mãe pra
mim”. A neta, a médica Ana Carolina Zuliane Maganha, 38, é pura
admiração: “Ela não se tornou a vozinha do crochê. Venceu dificuldades, os
desafios e virou uma mulher forte, que acredita na vida. Eu aprendo com ela”.
A neta conta uma passagem recente e fantástica:
“Uma noite, passava das 9h, estava eu com meus dois filhos e marido no carro e
fui à casa dela para levar um remédio. Aí, ao chegar à portaria, o porteiro
logo me disse que ela estava no café da quadra com as amigas, toda animada e
ouvindo música. Ela me olhou e disse: ‘Carol, minha querida, senta aqui, toma
uma taça de vinho’. Ela é assim. Minha avó é pura vida”.
Foram três dias conversando com várias pessoas para
traçar um perfil de Antônia Leal dos Reis. Foram três dias indo à casa de
Antônia para ver a vida dela, sentir, ver fotos em papel e escutar os discos de
Nelson Gonçalves na sua vitrola. Foram três dias para entrar no mundo de
Antônia. É muita pretensão querer definir uma mulher de 88 anos em três dias.
Antônia é o que de mais perto a gente conhece ou tem ideia de ser humano. Cada vez em extinção. Um ser humano que empolga, apaixona e nos convida para viver a mesma história. Por alguns momentos, era como se o repórter estivesse de carona, no Jipe 1954, rasgando as estradas que ela dirigia no Paraná. Antônia é extraordinária. É o que se pode dizer sobre ela. E isso é definitivamente tudo.
(*) Marcelo Abreu – Foto: Carlos
Vieira/CB/D.A Press – Correio Braziliense
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