O Alvorada é solene,
despretensioso, audacioso, lírico. É nosso
Crônicas
urbanas, crônicas de afeto e do viver (Conceição Freitas)
Numa terça-feira desses estranhos tempos, fui
ao Palácio da Alvorada levar uma turista amiga. A primeira
novidade é que, para se aproximar da área externa, é preciso apresentar
documentos. “É o controle”, explica o soldado bem-educado, depois que eu
reclamo que há cinco governos visito o palácio e é a primeira vez que tenho de
me identificar para entrar na área pública. Os dois acessos ao palácio estão
fechados por sinalizadores gigantes de trânsito. Uma muralha laranja (a cor do
equipamento, que fique claro).
Ensaiei
um odiozinho silencioso, que se dissolveu por inteiro quando vi ao longe a
silhueta diáfana de algo que tocava o cerrado com a suavidade de um pássaro de
asas brancas em fundo azul. Seria uma miragem para os olhos e o coração já
cansados deste janeiro que ainda nem terminou. Ou, quem sabe, a projeção em
tamanho real da pintura de um edifício que só poderia existir em sonho, tão
etérea é a sua composição. Talvez seja uma música feita em concreto, vidro,
mármore e um sentido de brasilidade hoje esmaecido.
Se eu for
500 vezes ao Alvorada, 500 vezes vou pela primeira vez.
É Oscar
Niemeyer em sua mais suprema inspiração, técnica e percepção de Brasil, de sua
arquitetura vernacular, de cerrado e de céu. Quando desenhou o Palácio da
Alvorada, o arquiteto deveria estar tomado pela ideia de que estava criando um
palácio para representar com altivez (e sem ostentação), com leveza (e sem
arrogância), com invenção (e sem espetacularização), o país que, naquela
segunda metade dos anos 1950, estava esperançoso e feliz.
Era Oscar
sendo o mais perfeito Oscar. É o Brasil mostrando a si mesmo e ao mundo o
quanto é inventivo, lírico. O quanto sabe miscigenar influências estrangeiras
com a brasilidade que nos constitui. As colunas brancas (seriam garças de mãos
dadas?) sustentam a laje com a ponta dos dedos – é o avarandado dos casarões
das fazendas do período colonial brasileiro. O azul das persianas é o reflexo
do azul celeste. E as colunas brancas, as nuvens fincando pernas no cerrado.
O
arquiteto Claudio Queiroz identifica nas colunas do Alvorada as largas ancas da
mulher brasileira. “É a beleza plástica apenas que atua e domina, como uma
mensagem permanente de graça e poesia”, escreveu Niemeyer em ‘Minha experiência
em Brasília’.
Nas duas
vezes que entrei no Palácio da Alvorada (uma como repórter, outra como turista
em visitas programadas), nas duas vezes, me debulhei em lágrimas. Tudo é muito
forte: os salões abertos, a escada vermelha (quando vermelho não era a cor do
PT nem do comunismo nem de qualquer delírio semelhante), a parede dourada, a
economia de cortes internos (nunca vi paredes tão discretas), o volume vazado
que nos deixa do lado de dentro e do lado de fora, sob a natureza e sob a
civilização.
O
Alvorada é altivo, solene, despretensioso, audacioso, lírico, tudo ao mesmo
tempo. Tem técnica e tem arte e expressa o talento brasileiro. O Palácio da
Alvorada é a obra-prima de Niemeyer, diz a professora Sylvia Ficher, da
Arquitetura da UnB.
A
sinuosidade das colunas do Alvorada têm algo da pureza de Mies Van der Rohe e
da poética de Le Corbusier, “mas não se vê o peso do Le Corbusier, nem a frieza
do Van der Rohe”, diz Claudio Queiroz. Ela é a expressão de nossa mestiçagem,
do quanto somos muitos, do quanto somos negros, índios, portugueses.
Naquela
terça-feira, a terceira de janeiro de 2019, saí do Palácio da Alvorada trazendo
comigo o melhor do meu país, que tem muitos outros melhores. É deles que
devemos nos alimentar.
*As declarações de Sylvia Ficher e Claudio Queiroz
foram retiradas de um livrinho chamado ‘Palácio da Alvorada’, majestosamente
simples, de Severino Francisco.
**Essa crônica foi originalmente publicada na
revista Roteiro deste janeiro.
Mas gostei tanto que pedi pra me plagiar no Metrópoles.
Por Conceição Freitas –
Foto: Rafaela Felicciano - Metrópoles