Se perto de muita água, tudo é feliz, somos felizes. Temos o Paranoá
Crônicas urbanas, crônicas de afeto e do viver – (Conceição Freitas)
Quando Diadorim se aproximava, Riobaldo se esquecia de tudo e, “num
espairecer de contentamento, deixava de pensar”. Num desses encontros, os dois
escutaram uma lontra pelas bandas do rio. “Perto de muita água, tudo é feliz”,
pensou Riobaldo.
A muita água que abraça o Plano Piloto de
norte a sul pode ter existido muito antes de existir. É célebre, entre os
brasilienses, o relato do botânico francês Auguste Glaziou, que, em expedição
científica no final do século 19, ficou impressionado com “a calma severa e
majestosa” de um vale banhado por cinco longos fios de água. Muita água, tudo
feliz.
São águas do Riacho Fundo e do Ribeirão do Gama, que vêm do sul, e do
Ribeirão do Torto e do Bananal, que vêm do norte. Os quatro se juntam ao Rio
Paranoá, na altura do Palácio da Alvorada, e compõem um lago que tem o formato
de um pássaro mítico – um corpo e quatro asas.
Tomado pela paisagem, Auguste Glaziou fez mais de 100 passeios a pé pelo
lugar, onde, entre dois grandes chapadões, havia imensa planície que “outrora era
um lago devido à junção de diferentes cursos de água”. Esse ajuntamento de
corredeiras abriu uma garganta funda pela qual se precipitava o Rio Paranoá.
Bastaria fechar a brecha por onde desciam as águas e se teria o lago originário
de volta, escreveu o botânico da Missão Cruls.
Felizes ficamos os que aqui estávamos quando, meio século depois, a
brecha foi fechada e as águas represadas começaram a formar o lago até que as
águas ficassem 1.000 metros acima do nível do mar, a cota mil, que deu nome ao
clube. O lago, portanto, olha de cima para o Atlântico, mesmo que ele esteja a
1,5 mil km de distância.
Depois de ocupar todas as cotas abaixo dos 1 mil metros, o lago se deu
por concluído e nas suas bordas surgiram duas penínsulas, a que formou o Lago
Norte, que tem o desenho de uma bota muito parecida com o mapa da Itália, e a
que virou Lago Sul, em feitio menos preciso.
Em 12 de setembro de 1959, portanto, há quase 60 anos, Juscelino subiu
num trator e inaugurou a barragem do Lago Paranoá.
A essa altura, já eram nítidos contornos da Esplanada, da Rodoviária, da
Asa Sul. O Palácio da Alvorada e o Brasília Palace Hotel já estavam prontos, a
Igrejinha e a Ermida também. Já havia, portanto, uma cidade.
O vencedor do concurso do Plano Piloto havia evitado
construir bairros na orla do lago, “a fim de preservá-la intacta, tratada com
bosques e campos de feição naturalista e rústica para os passeios e amenidades
de toda a população urbana”.
Note-se, é preciso reafirmar, que Lucio Costa pensou um lago não apenas
para os privilegiados moradores de suas margens (à época, funcionários
graduados da Novacap que desdenhavam da oferta). A paisagem era destinada “a
toda a população urbana”. Perto de muita água, todos seríamos felizes, os ricos
dos lagos, os remediados do Guará, os pobres do Varjão.
O lago é o mais democrático monumento de Brasília, ou, pelo menos,
deveria ser. São 80 km de margens, maior que o litoral do Piauí, que tem 66 km.
São 4,9 bilhões de m³ de água. Divididos por 3 milhões de habitantes, dá 1,6
mil m³ de água por pessoa (uma piscina olímpica tem 2,5 mil m³). A felicidade
em metros cúbicos.
Com a desobstrução de áreas antes ocupadas por moradores, a orla do Lago
voltou a nos pertencer, de fato e de direito. As prainhas, os decks, as três
ilhas, as trilhas, as calçadas, as pracinhas, os jardins, as capivaras, as
cuícas-d’água, os micos-estrela, os biguás, as garças, as matracas, os
marrecos, os peixes e… as lontras, como aquelas que Riobaldo ouviu mergulhar
(“o issilvo de plim”) e lhe avisaram que a felicidade estava bem próxima.
Perto de muita água, os brasilienses somos
muito felizes.
*Esta crônica é dedicada ao governador do Distrito Federal, Ibaneis
Rocha, que já declarou que “não pode ter gente circulando, porque isso traz
sujeira para dentro do nosso lago”.
Por Conceição Freitas – Fotos: Daniel Ferreira - Metrópoles