Encontros
e desencontros no aeroporto de uma cidade de asas
Crônicas urbanas, crônicas de afeto e do viver .(Conceição Freitas)
Não poucas vezes, acordo de madrugada com ímpeto de ir para o aeroporto
e pegar o primeiro avião. Aeroportos são seres míticos, ninhos de pássaros de
aço. Quando deles me aproximo, abrem-se portas no meu peito e perco a noção do
impossível.
Há uma estrada de avião sobre a minha quadra. Todos os
dias eu os vejo aterrissando. Aos meus olhos, estão sempre indo e eu, neles.
Ir, não importa pra onde, é sempre bom. O não-lugar é um lugar que me cabe
direitinho.
Dizem as
ciências das cidades que aeroportos, rodoviárias, shoppings, supermercados são
não-lugares, porque sem identidade, porque desabitados de sentido. Não nos
pertencem. Por extensão, as redes sociais também são não-lugares. Daí o vazio
que vem com a exaustão dos contatos virtuais.
O que faz
do aeroporto um lugar, pra minha pobre alma de asas cortadas, é o que ele
promete: o voo. Suporto a indiferença asséptica dos imensos galpões
tecnológicos (são todos iguais nas suas propagadas diferenças), suporto a
assepsia porque no fim do corredor há um pássaro de aço me esperando.
O primeiro aeroporto da minha vida foi o de Brasília. Menina, eu o via em fotografias (de papel) que o
pai havia trazido de longas viagens para o outro lado do mundo. Era uma
caixinha branca e comprida de madeira e de dentro dela saíam homens elegantes e
algumas mulheres ainda mais elegantes. Ao longe, a vastidão do Cerrado e, bem
de perto, a potência dos aviões. ( Encontros e desencontros no
aeroporto de uma cidade)
A construção do aeroporto de
Brasília é, dentre os feitos da nova capital, um dos mais heroicos.
Dito de modo menos romântico, é dos que mais representam a capacidade inventiva
e a resistência física e psíquica dos candangos. O engenheiro
responsável pela pista de pouso está com 93 anos. É carioca, mora no Rio e se
chama Atahualpa Schimitz da Silva Prego. (Ele precisou de mais de 3 mil páginas
para escrever as suas memórias candangas. Estão prontas, à espera de editora).
Chovia muito no tempo da construção de nova capital. Eram seis meses de seca, seis de chuva. As
obras da pista começaram em novembro de 1956, início da invernagem. Era preciso
abrir a estrada, fazer a terraplenagem e a compactação da terra, mas as águas
caíam incessantemente, conta doutor Atahualpa.
Estabeleceu-se um regime de trabalho de 24 horas,
nas quais se esperava a mínima estiagem para retomar as obras. Às vezes, eram
duas horas sem chuva para 22 de aguaceiro.
Se havia
uma vantagem, era a de que as poças indicavam os defeitos na pista e traziam
quero-queros para banhos de piscina. A fim de evitar mais lama, os candangos
tiravam com latas a água da chuva dos microlaguinhos que se formavam na pista.
A primeira estação de passageiros de Brasília era
um mimo da arquitetura moderna em madeira. Caixinha retangular com
treliças de um lado e estreito avarandado de outro.
O aeroporto era o ponto de encontro dos funcionários graduados. Era lá
que recebiam os jornais do Rio e de São Paulo, as encomendas da família, que
bisbilhotavam a chegada dos muitos visitantes brasileiros e estrangeiros, que
se pedia para algum passageiro levar uma carta. Surgiu a Associação dos
Frequentadores do Aeroporto de Brasília. ( Encontros e desencontros no aeroporto de uma cidade)
E se estávamos em Brasília, o projeto do
aeroporto definitivo tinha de ser de Oscar. O arquiteto fez
um desenho inspirado no Charles de Gaulle, de Paris, mas naquele começo dos
anos 1970 os militares não aceitaram que um comunista projetasse o aeroporto da
capital do Brasil. No projeto de Niemeyer, havia uma estação circular com
colunas que lembravam as do Palácio do Planalto. O arquiteto comunista
esperneou um bocado, mas não adiantou.
Passadas
duas décadas, o aeroporto voltou a ter a inspiração modernista de Oscar. Foi
quando o arquiteto Sérgio Parada desenhou um volume central, retangular,
ladeado por dois volumes circulares. Parada, de filiação moderna, desenvolveu o
projeto a partir do desenho original de Niemeyer.
Quando o
aeroporto foi privatizado, em 2012, houve nova ampliação, sem que o autor do
projeto fosse consultado. Sérgio Parada esperneou um bocado. Em vão. Mas o
desenho original está de pé.
O maior dos não-lugares de Brasília é o terceiro aeroporto mais pontual do mundo e também o
terceiro, no Brasil, em número de embarques e desembarques.
São
Paulo, no Brasil, e Miami, fora, são os destinos mais frequentes dos voos que
saem desta cidade que, como anjos, tem asas.
Conceição Freitas – Fotos: Arquivo Pessoal/Público do DF
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